14/03/2023
estou começando os registros de minhas viagens ao hades, meu mundo inferior/interior. hades na mitologia grega era o deus do submundo e, por metonímia, terminou se transformando em seu próprio domínio. faço esta introdução para que eu tenha clareza do que estou fazendo e como.
a minha primeira viagem ao hades aconteceu no primeiro dia de minha análise. para ser mais preciso, o que percebi foi que já estava no hades há um tempo. a minha queda se deu em momento ainda impreciso na minha memória, me dei conta que não estava simplesmente em qualquer lugar do hades, estava submerso no rio aquerontes. já não tinha sonhos, lembranças, vontades, nem mesmo pulsão de vida. quando carontes, travestido de meu analista, ainda nas primeiras sessões, me estendeu seu remo para que eu subisse no barco da travessia, eu só consegui tirar a cabeça da água. como foi doloroso respirar novamente, mas ainda não conseguia abrir os olhos. mesmo a penumbra do hades machucava minha alma.
de olhos fechados, mas sentidos parcialmente acordados, eu ouvi o primeiro "por quê". carontes chamava atenção para a falta de sentido de estar imerso no rio do esquecimento quando se ainda é vivo. vivo. vivo. vivo. repeti aquela palavra mentalmente como um mantra. então eu estava vivo. neste dia eu consegui abrir os olhos pela primeira vez. nada do que eu vi em meu entorno fez muito sentido, mas era tudo tão familiar, era tudo tão confortável. fechei novamente os olhos, mas apurei ainda mais meus ouvidos.
carontes passou a me visitar duas vezes por semana e a cada visita ele me ajudava a acordar uma parte de mim. não foram visitas cordiais, elas me custaram, e me custam, muito esforço e causaram/causam muita dor. carontes parecia não se importar, e juro que flagrei um ou outro sorriso dele enquanto eu, já de olhos abertos, chorava ao enxergar onde estava.
odiei carontes pela primeira vez. por que ele queria que eu entrasse naquele barco? eu já havia entregado a ele a moeda de ouro que lhe era de direito, o que ele poderia ainda querer de mim? depois de 4 meses de visitas, ao olhar para o barqueiro, vestido em sua túnica xadrez azul clara, não vi ninguém além do vazio. o que estava acontecendo? os deuses estavam a brincar com minha já delicada sanidade? eu não podia acreditar que aquele barco, que duas vezes por semana chegava até meu esconderijo no aqueronte, era somente um manto e um remo. onde estava carontes? desistira de mim e agora me ridicularizava mandando-me um fantasma, como eu, para me visitar? olhei-o com o ódio recém acordado de modo a obter respostas! ouvi mais perguntas e, como sempre, um até mais. odiei-o durante todo o intervalo entre as visitas. chorei durante todo o intervalo das visitas. voltei a me afundar novamente em meu rio. deixei tudo submerso, menos os olhos. boiava no rio do esquecimento somente com os olhos abertos. tudo mais esquecido novamente, mas sem conseguir voltar a fechar os olhos.
amei carontes pela primeira vez. ele chegou em silêncio, como sempre, não me perguntou nada. olhei para sua figura obscura buscando alguma forma de vida. só achei o vazio. continuava a me deparar com o vazio. aquele manto era animado por algo que não tinha forma, não tinha vida e era vida. levantei a cabeça novamente da água e flutuei até ficar cara a cara com carontes. ele me devia respostas. afinal, ele havia me acordado. assim que fiquei diante de seu rosto escondido pelas trevas, uma luz se acendeu em mim. eu já estava completamente fora do aquerontes. minha revolta e ódio haviam me dado o impulso final. a luz que emanei iluminou seu rosto e eu o vi pela primeira vez inteiro. era um espelho. ele tinha vida, uma personalidade, vontades, desejos etc., mas ali, diante de mim, em seu barco e com seu remo ele era meu inconsciente projetado. era eu. um eu esquecido/escondido/desistido/reprimido/aturdido. sua função como barqueiro, eu compreendi, era me levar pelo doloroso passeio que precisava ser feito pelo meu mundo inferior/interior. o amei. me amei depois de muito tempo.
sair do aquerontes foi um pequeno passo. o torpor do esquecimento ainda é forte, mas carontes diz que vai passar. aos poucos tenho lembrado do que vivi e de com quem vivi. o que me assusta agora é perceber onde vivo, com quem vivo e como vivo. vivo?
esta é a minha história de passeios com o barqueiro de hades pelo submundo.