26/08/2020
“Agora você quer perturbar alguém diga: quem é você? Seja coerente com o que você é! Pronto, estragou a pessoa (risos)”. Esse recorte de uma fala bem humorada do Lama Samten no retiro de inverno ficou reverberando aqui.
Tenho pensado sobre essa exigência que costumamos fazer do outro (ou de nós mesmos) e logo que o outro não se encaixa em nossas visões sobre quem ele é ou deveria ser: o cancelamos. Quando exigimos que uma pessoa se encaixe no que esperamos dela, não estamos muito distantes do que sustenta o totalitarismo.
O que esperamos das pessoas?
Uns dias atrás conversando com meu amigo Pedro (.psi) sobre alguns fatos, boatos e histórias de grandes pensadores, mestres e poetas da humanidade que admiramos, ele disse o seguinte (no contexto do perigo do cancelamento de suas obras por alguns): O que esperamos? Pessoas perfeitas com a mesma coerência que se vocifera nos gritos de ordem de hoje em dia?
E quando estamos perturbados então, achando que nós mesmos precisamos ser coerentes até chegarmos ao ponto de desabar em crise: ‘não sei quem eu sou!’?. Calma, você não está doente ou precisando ser tratado, Robert Thurman diz: “Você nunca vai “se encontrar” de uma vez por todas. Pare de sofrer pensando que seu insight é confusão (...) Você já descobriu seu verdadeiro eu, seu grande eu do não-eu!*”. E essa abertura que surge do não-saber, não-encontrar, é o que permite você manifestar sabedoria e compaixão pelo mundo, se conectar. Thurman continua: Buda, por exemplo, estava feliz por não saber quem ele era no sentido rígido e fixo de sempre. Ele chamou o fracasso de saber quem ele era de "iluminação".
Mas aí, não quero dizer que não é necessária uma certa coerência relativa a cada momento, como o Lama também disse: de modo geral, precisamos de estruturas autoritárias pra deixar claro quem deve fazer o que, mas então, como construir estruturas de organização social não autoritárias? A pessoa ela mesma precisa a cada determinado tempo, renovar os seus votos, restabelecer as motivações e intenções, relembrar o que faz sentido e, se não fizer mais, é possível mudar, existe liberdade, você não está preso, só precisa de clareza sobre seus votos e motivações.
Como ouvi de James Low também: A realidade de todo evento é que todo evento está passando. Não consigo definir uma pessoa e a verdade de sua existência. Porque a existência não tem uma verdade eterna, é um momento de surgimento que já se passou.
Então, como exigir coerência, se nós somos a cada momento, sendo?
*tradução livre que fiz do inglês: selflessness
-artwork: check him out.