03/10/2020
O MARTELO DE REFLEXO
17/09/2020
Em plena era da medicina digital, este singelo instrumento médico ainda resiste bravamente
Para receber um diagnóstico em 2020 – pelo menos em uma unidade de saúde equipada com os mais modernos aparelhos – pode ser necessário fazer exames de imagem que fatiam seu corpo em cortes digitais de alta resolução tão finos como fatias de pão. Seu DNA pode ser inserido em um sequenciador de genes que cospe seu código de reles mortal em questão de horas. Até o seu smartphone está sendo usado para revelar problemas de saúde, e talvez até possa ajudar na detecção dos sinais e sintomas da covid-19.
No entanto, quase 130 anos desde o início de sua utilização, depois de décadas da ciência ter mapeado as nossas vias neuronais, um simples pedaço de borracha com um cabo de metal continua sendo uma das ferramentas mais essenciais da medicina. Refiro-me ao martelo de reflexos, barato, portátil e fácil de usar.
Esse dispositivo despojado pode ser inestimável para o diagnóstico de doenças neurais e musculares e na determinação de se a doença do paciente está no cérebro ou em outra parte do corpo. Também pode ajudar a cortar gastos na saúde, evitando exames desnecessários, que muitas vezes são caros. No entanto, como muitas descobertas médicas e científicas importantes, o martelo de reflexos tem origens humildes – neste caso, o porão de um hotel vienense.
A pousada era administrada pelo pai do Dr. Leopold Auenbrugger, um médico do século XVIII que consta como um dos precursores da medicina moderna. Para avaliar quanto vinho restava para os clientes, os funcionários do hotel batiam nos barris com as mãos e ouviam um som surdo ou timpânico. O Dr. Leopold percebeu que a mesma técnica, agora chamada de "percussão", poderia ser aplicada ao torso humano para, por exemplo, determinar a existência de algum derrame. O médico escreveu isso no seu artigo de 1761 denominado Inventum Novum ou Nova invenção que possibilita ao médico detectar doenças ocultas no tórax por meio da percussão, em tradução livre.
Dr. Leopold Auenbrugger (aqui com sua mulher Marianne) é considerado um dos precursores da medicina moderna, tendo implementado a ideia de detectar doenças por meio do som.
Guerra do martelo de reflexos
Considerado mais preciso do que a mão humana, não demorou muito para que fossem projetados martelos de percussão para diagnosticar as doenças com mais precisão. Isso acirrou a competição.
O modelo do médico escocês Sir David Barry, lançado em 1820, foi o primeiro. O médico alemão Dr. Max A. Wintrich veio logo a seguir e se tornou mais popular, mas não sem críticas: "O martelo de Wintrich é inconveniente de segurar, é duro (...) exige treinamento para usá-lo, e ainda assim não cumpre seus propósitos", comentou um inventor rival.
Como o neurologista Dr. Douglas J. Lanska escreveu em um artigo em 1989 sobre vários tipos de martelos de reflexo: "Alguns eram em forma de T ou L, outros pareciam machados de guerra, machadinhas ou até varinhas de condão." O autor acrescentou que nenhum material ficou de fora: madeira, ébano, osso de baleia, latão, chumbo, até mesmo "lã revestida com veludo" (um tipo de tecelagem).
À medida que a guerra do martelo de percussão avançava, médicos e cientistas também começavam a entender o conceito dos reflexos, ou respostas involuntárias quase imediatas a estímulos que ocorrem antes de qualquer informação sensorial chegar ao cérebro. Espasmos musculares. Piscar. Espirrar. Engasgar. Tudo isso são alças de circuitos automáticos entre os neurônios sensoriais e os motores que nos ajudam a navegar em nosso ambiente e nos proteger do perigo.
Em 1875, os neurologistas alemães Dr. Heinrich Erb e Dr. Carl Friedrich Otto Westphal foram uns dos primeiros a perceber que pode ser útil provocar um reflexo percutindo rapidamente os tendões dos principais músculos. Os neurologistas identificaram que o reflexo do tendão patelar poderia particularmente ajudar a avaliar a função nervosa.
Dr. Anton Wintrich introduziu este modelo de martelo de percussão em 1841.
Martelos especificamente adequados para testar os reflexos tendíneos foram logo produzidos, o primeiro dos quais tinha a forma atualmente clássica à qual estamos habituados: um cabo de metal fino com uma cabeça triangular de borracha. Projetado pelo médico norte-americano Dr. John Madison Taylor na Filadélfia em 1888 – e desde então modificado por muitos – o dispositivo simples era suficientemente pesado para provocar o reflexo e tinha bordas arredondadas para diminuir o impacto. O modelo básico custa apenas R$ 25,00 na Amazon.
O martelo Krauss, desenvolvido pelo médico teuto-americano Dr. William Christopher Krauss, foi projetado na mesma época. Tinha duas cabeças arredondadas: uma grande para os joelhos e outra menor para os bíceps. O Dr. Ernst L. O. Trömner fez a mesma coisa, mas afinou a extremidade para avaliar os reflexos cutâneos. Havia também o martelo Queen Square, o martelo Babinski, o martelo Buck e o martelo Berliner. O martelo Stookey ostentava uma escova de pelo de camelo para melhor avaliação da sensação táctil. E a lista continua.
Passado para presente
A Dra. Daniella C. Sisniega é residente de neurologia no Mt. Sinai Medical Center. Em 2017, na reunião anual da American Academy of Neurology , quando ainda era estudante de medicina, a Dra. Daniella apresentou um pôster contando a história do martelo de reflexo: "Me fascina o modo como o martelo de reflexo começou como martelo de percussão e foi então adaptado para provocar reflexos, e faz parte do equipamento de exame de todos os neurologistas até hoje", disse a médica.
"Também não sabia que o pequeno triângulo de borracha tinha sido o primeiro martelo de reflexo. Acho que devo um pedido de desculpas!", brincou, referindo-se à falta de glamour dos baratos martelos Taylors.
"O Tomahawk faz parte do kit que todos recebem ao ingressar na faculdade de medicina", lembra. "A borracha é barata e muito leve, enquanto os outros martelos têm a cabeça mais pesada, de modo que você pode usar o 'movimento' do martelo em oposição à força do golpe para testar o reflexo."
Embora receba bem os avanços tecnológicos da medicina, o neurologista e especialista em esclerose múltipla da Mt. Sinai School of Medicine, Dr. Stephen Krieger, não abre mão do martelo de reflexo no diagnóstico médico moderno.
"Poderíamos discutir sobre as nuances dos martelos – o Queen Square, o Tomahawk, com cabo de plástico, cabo de metal, pesado, flexível ou rígido – mas o martelo em si está sempre ao nosso alcance. Os reflexos contam a história de todos os tipos de doenças neurológicas", disse o neurologista.
O Dr. Stephen explica como as doenças cerebrais, como um acidente vascular cerebral (AVC) ou um tumor cerebral, geram reflexos hiperativos, enquanto as doenças que atingem os músculos e os nervos periféricos geralmente resultam em diminuição ou abolição dos reflexos. A diminuição dos reflexos, por exemplo, é um sinal comum na dorsalgia por doença degenerativa discal.
O Dr. Andrew Wilner, um colaborador de longa data do Medscape e neurologista da equipe de um hospital municipal em Memphis, no Tennessee, conta a história de um de seus pacientes, que tinha lombalgia, fraqueza e parestesia nos membros inferiores. O Dr. Andrew estava inclinado a fazer o diagnóstico de síndrome de Guillain-Barré ou de mielopatia. Os dois quadros podem evoluir para emergência médica, mas cada um requer um tratamento inteiramente diferente.
"O martelo de reflexo foi sem dúvida nossa ferramenta mais importante para estreitar o leque do diagnóstico diferencial", disse o médico. "Se tivéssemos encontrado diminuição ou abolição dos reflexos tendíneos profundos, a síndrome de Guillain-Barré teria sido mais provável. Acontece que o paciente tinha hiperreflexia patelar patológica, indicando lesão cerebral ou medular."
Por causa desse achado, o Dr. Andrew solicitou um exame de imagem da medula espinhal do paciente, onde foi encontrada uma lesão – em vez de fazer os caríssimos exames necessários para o diagnóstico da síndrome de Guillain-Barré.
O Dr. Andrew acredita que a simples arte da anamnese e do exame físico do paciente pode ser ofuscada pela miríade de novas técnicas diagnósticas. Em termos de recursos clínicos, lhe parece que algumas vezes o básico é o melhor.
"A tecnologia é gloriosa", admite Dr. Stephen, "e irá nos ensinará coisas sobre os pacientes que nunca poderíamos ter concebido ou imaginado. Mas o movimento simples, elegante, barato e quase plebeu do balanço do martelo de reflexo tem uma relação de custo e benefício que eu acho que provavelmente nenhuma tecnologia de ponta poderá igualar".
Fonte: Medscape.com.br