21/01/2024
Humor ferino e analgésico
Antonio Praxedes, notável assessor da Sudam, me marcou em uma publicação de 2018 sobre uma das últimas pérolas deixadas sobre o genial Euclides Bandeira Chembra, meu editor-chefe em "A Província do Pará". Em janeiro, ele completaria 80 anos de idade, se estivesse vivo, e ainda faria muita gente rir, ensinando jornalismo, amizade, cultura e boemia com boa prosa. O texto é de um xará, Euclides Farias, cujo humor era também notável, que nos deixou há cinco anos. Quando fraturei as pernas em dezembro de 1978, em um acidente de carro, ele me ligou no hospital dias antes do Natal e saiu com essa tirada: "Feliz Natal, Perna Podre!. Você tem que vir trabalhar. Não inventa desculpa". E caímos na gargalhas. O efeito analgésico foi fantástio...rss.
Segue o texto de Euclides para Euclides
“Se vivo estivesse, o jornalista e escritor Euclides “Chembra” Bandeira, completaria 75 anos neste dia 6 de janeiro de 2018. O jornalismo e a cultura do Pará perderam um profissional talentoso, um cronista apreciável e os amigos uma presença indispensável. A crônica, abaixo, reproduzida sem alteração, pela primeira vez fora de jornal e agora com ilustração do craque Biratan Porto, um de seus inseparáveis amigos, foi publicada originalmente no Diário do Pará há 17 anos, no dia seguinte à morte do Chembra. Narro aí os últimos papos, o último “Sem Censura” e a última cerveja partilhada. Tintim, Chembra.................
Chembra: a última entrevista
O gabinete com porta sempre aberta de Roberto Jares Martins, n’A Província do Pará, exalava dois aromas: o do jornalismo, na escola em que o jornal se transformara sem pretender, por abrigar de tempos em tempos legiões de “focas” ávidos pela legendária paciência de Bob Jares em ensinar, e o do humor, com as invasões frequentes de quem cumprira a obrigação na redação e tinha tempo sobrando para jogar conversa fora. Redator-Chefe, Euclides “Chembra” Bandeira era presença obrigatória nessas tertúlias jornalísticas sem hora marcada.
Ali, em meio à descontração, sarcasmo e veneno do humor cortante do Chembra, fechava-se um jornal fictício, tantas eram as informações oficiosas ou impublicáveis e as análises de notícias de pé quebrado ou cifradas, publicadas assim na imprensa local por alguma imposição editorial. A baixaria da política, as gafes dos salões societies e os pecados quase sempre imperdoáveis do exercício da profissão.
Raciocínios faiscantes, Jares e Chembra surpreendiam com notícias preciosas e se divertiam contando aventuras testemunhadas em bares, fossem os da alta roda, fossem os pés-sujos fronteiriços à Província, que os dois frequentavam com a mesma elegância.
Lembrei-me disso há três semanas, ao término de um programa de debates na TV Cultura, no qual eu e Chembra éramos os debatedores, na última participação dele em televisão. Foram horas consumidas com as mazelas de Cabral, agora festejado por proeza velha de 500 anos, e o almoço ficou para o outro dia. Na saída da emissora, o rumo de casa ficou no meio do caminho, no Bar do Tota, na 25 de Setembro.
- Vamos tomar uma xará - convidou ele.
Perdemos o horário do jantar também.
Na conversa, entrecortada por observações poéticas, como a respeito do estranho e bendito traçado da 25, que dá a cada casa um jardim particular, Chembra, longe de ser ególatra, falava com entusiasmo da coluna dominical que vinha escrevendo no Diário do Pará. Libertara-se, justificou, das amarras do jornalismo diário para poder brincar com a notícia, sendo-lhe fiel ao ela carregava de fato e, acrescento eu, genial naquilo que a ficção literária e o humor permitem fazer com o boato.
O bate-papo - fui na verdade um bom ouvinte, quase um entrevistador - invadiu searas políticas, televisivas, amorosas, humorísticas, deslizou para as fofocas que a cidade se encarrega de fomentar e foi morrendo na proporção exata do cansaço físico que a empreitada já prenunciara.
Antes da despedida, eu quarentão, ele com 57, a conversa girou em torno de saúde, assunto recorrente nessa idade, sobretudo para quem nunca viveu uma vida de monge tibetano. Ex-fumante - “uma concessão a mim mesmo”, disse -, confessava-se mais saudável, a despeito dos malefícios insondáveis que os anos de desregramento e prazer lhe foram tributando.
Do avançar da idade e da inevitável fragilidade masculina, lembramos que alguém ironicamente escreveu que, em mesa frequentada por homens de 30, o papo preferencial são as gatinhas; numa de homens de 40, o restaurante da moda; e, em mesa de cinquentões, a descoberta de um médico formidável capaz de mentir com inigualável maestria ao prometer esticar-nos a longevidade em mais meio século.
A conversa terminou à moda chembraliana, com uma piada, contada às pressas, sob a pressão do filho Rodrigo e de um amigo que, de carro, foram buscá-lo no bar para resolver uma complicada operação em banco 24 horas que os garotos não conseguiam fazer com os cartões do Chembra.
No táxi que me levou para casa viajei com a certeza de que aquele sujeito que ficara para trás era mesmo para se ter na conta das melhores amizades que alguém poderia pretender ter.
(Crônica escrita em 2000)............................................................
Euclides Farias é jornalista e cronista, 59 anos de idade e 40 de profissão exercida nos jornais Marco Zero (AP), O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados (ANDA), Rádio Cultura, Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde (SP). É editor de coluna no Diário do Pará.
