06/11/2022
Afinal, pra quê serve uma análise?
Dou uma resposta curta e direta: para desconstituir o sujeito suposto saber. É esta a finalidade de uma análise, todo o seu percurso se encaminha para isso. Mas o que é o sujeito suposto saber? É possível pensá-lo de várias formas, e em diversos campos, mas para tentar dar uma imagem dele, para que possamos reconhecê-lo, vamos tentar associar com algumas palavras: trata-se do lugar da Verdade (toda, absoluta), trata-se do lugar da certeza, ou do lugar do Deus onipotente, ou de um sujeito que escape à castração, ou que comporte o brilho que aponta para algo além daquilo que se apresenta na realidade. Quando nos fazemos sujeitos, renunciamos a algo essencial para entrar na realidade, perdemos, como se diz, uma libra de carne que jamais poderemos reecuperar. Porém tudo que vivíamos como algo 'fantástico', místico, sobrenatural, paranormal, tudo que aponte para o sublime, para o mistério, para a perfeição, tudo isso se reduz a determinados pontos, que fazem parte da realidade mas que apontam para um além dela, para um além disto que vivemos no aqui e agora, que nos trazem um pedacinho daquele ser completo e grandioso que acreditamos ter tido contato antes de subjetivarmos esta perda. Trata-se do 'objeto a'. Todo o problema do neurótico é acreditar que o objeto a, na verdade, nós não temos, mas este sujeito suposto saber tem, ou sabe como consegui-lo. Aí está o engano. E por quê uma análise se encaminha para a destituição do sujeito suposto saber? Porque todo o sofrimento neurótico gira em torno desta figura. Desconstitui-lo é saber que não há um saber total em algum lugar. Pense no saber científico: é um saber chato, desencantado, sem graça, não se trata de um saber que nos preenche enquanto sujeitos, é um saber que se faz dentro de um método, que se faz em determinadas condições, que é incompleto, parcial, que está aberto ao diálogo, que se faz dentro de uma comunidade científica, que é posto em debate com os pares, é um saber destituído de uma "Revelação", de uma mística, de algo sobrenatural ou fantástico, não revela nenhuma moral, não nos orienta em nada na vida, é um saber 'bruto'. Da mesma forma, no campo político, a democracia é sem graça também, nos queixamos o tempo todo de que ela não funciona como queríamos, temos sempre de renunciar a algo e nunca é da forma como queríamos que fosse, não conseguimos fazer a coisa funcionar 'na marra', não há esse lugar do Poder Soberano, cada um cede de algo; digamos que, quando a democracia funciona bem, todos perdem algo no final. O que seria a figura do suposto saber na ciência ou na democracia? Na primeira, seria o saber religioso, seriam as teorias conspiratórias, seriam as crenças, as certezas que não entram em dialética com o outro, que não são permeáveis, que não dialogam, que são fixas, que excluem o debate com os pares, apontam para o inefável, o indizível, aquilo que apenas 'se sente', aquilo que apenas 'se sabe', que não necessita de demonstração, que não necessita de se dar provas. Ou seja, ao invés de saber, trata-se do lugar da certeza. Na democracia, seria o autoritarismo, o totalitarismo, a volta do Poder Soberano, aquele que se mistura com o lugar do Pai, que se mistura com paixões, como o amor, a vingança, o ódio; o lugar daquele que se idolatra, que se fantasia, que ocupa este lugar de exceção, o ser não castrado, aquele que não cede, que não necessita se curvar aos demais, que não necessita renunciar a nada. Da mesma forma, a desconstituição do sujeito suposto saber dentro do campo da psicanálise também traz a marca não exatamente da insatisfação, mas do desencantamento. Trata-se do sujeito que já perdeu aquela fantasia de que, se não pular 5 vezes, algo terrível lhe irá acontecer, e que sempre lhe dava um gostinho de que há algo a mais na realidade e que lhe angustia; ou daquele sujeito que já não espera demais de seu parceiro amoroso, que não necessita mais da romantização própria ao campo do amor, já não vive nem tão ciumento, nem tão loucamente apaixonado; ou do sujeito que já não vive deprimido por não ter alcançado o ideal de ser humano que esperava ter sido, e que se contenta com o que está aí, com o que se fez e com o que ainda poderá fazer; ou do sujeito que já não se angustia ao ter de se apresentar, ou se expor diante dos outros, porque já não espera mais tanto do que irá dizer, nem se importa tanto com o que, do que disse, os outros ouviram, isto é, sabe que na melhor das hipóteses não haverá reciprocidade. Trata-se de um sujeito que não necessita que a conta se feche, que a chave entre na fechadura, que as coisas entrem em equilíbrio, que haja harmonia, que os conflitos deixem de existir; ou que não acredita mais numa suposta maturidade ou ideal que deveria alcançar, que consegue questionar os discursos que sustentam os pontos supergoicos, de 'como as coisas deveriam andar', de 'como as coisas deveriam ser feitas', de 'como eu deveria ser', isto é, discursos que sustentam a figura do sujeito suposto saber. É um sujeito que consegue sustentar um vazio neste lugar onde parecia que deveria haver, afinal, alguma coisa 'a mais', aquele brilho que, ainda que trouxesse angústia e medo, lhe dava a esperança de viver algo que está fora de toda realidade possível. É um sujeito que está advertido de suas romantizações, que consegue vivenciá-las, mas que não se engana com elas.
Oliver Schmidt