01/12/2021
"...*𝐏𝐨𝐫𝐪𝐮𝐞 𝐡á 𝐜𝐫𝐢𝐚𝐧ç𝐚𝐬 𝐝𝐞 𝟕 𝐚𝐧𝐨𝐬 𝐪𝐮𝐞 𝐣á 𝐪𝐮𝐞𝐫𝐞𝐦 𝐬𝐞 𝐬𝐮𝐢𝐜𝐢𝐝𝐚𝐫?*
O neurocientista Alon Chen, diretor do Instituto de Ciência Weizmann (Israel), depois da entrevista.Santi Burgos
Como todo israelense, Alon Chen teve que fazer três anos de serviço militar. Foi destinado a um batalhão de paraquedistas em plena guerra no Líbano. “A experiência mais forte provavelmente foi perder um amigo em combate. Vi que estava ferido, que estava morrendo. Fiz tudo o que pude para salvá-lo, mas foi impossível. É algo que deixa uma marca indelével em você”, rememora Chen.
Desde então, soube que queria dedicar o resto da sua vida a entender o que acontece com um cérebro que sofre uma experiência traumática. Filho de judeus marroquinos emigrados a Israel na década de 1950, Chen pertence à primeira geração de sua família que foi à universidade. Doutorou-se em neurobiologia e passou uma temporada nos Estados Unidos especializando-se em estudar o efeito do estresse no cérebro em nível molecular. Atualmente dirige o Instituto de Ciência Weizmann, em Israel, um dos centros de pesquisa mais prestigiosos do mundo, e uma instituição conjunta do Weizmann e do Instituto Max Planck da Alemanha que estuda doenças mentais relacionadas com o estresse.
De passagem por Madri para proferir uma conferência na Fundação Ramón Areces, Chen argumenta nesta entrevista que nossa sociedade atual potencializa a depressão, a ansiedade, a bulimia e outras doenças que não entendemos bem e que estão há 50 anos sendo tratadas com os mesmos fármacos –os quais não fazem efeito para um em cada três pacientes.
Pergunta. Como estuda os efeitos do estresse no cérebro humano?
Resposta. O melhor seria estudar humanos, claro, mas não podemos extrair o cérebro de uma pessoa estressada ou traumatizada. Mas podemos tentar ver o que acontece neles com scanners, estudos de ressonância funcional, exames de sangue, que nos dizem muitas coisas. Também usamos cérebros de pessoas falecidas. O estresse pode causar muitas patologias, como a depressão e a ansiedade e, por exemplo, temos acesso a bancos de cérebros de gente que sofria de depressão e se suicidou. Além disso, usamos modelos animais.
P. Não há um abismo entre o estresse em um animal e em uma pessoa?
R. Nem tanto. A resposta ao estresse é muito parecida em diferentes espécies. Os genes, proteínas e circuitos cerebrais que controlam sua resposta ao estresse são os mesmos usados por um peixe e por todas as espécies que há entre eles e nós.
P. E como é essa resposta?
R. É um mecanismo básico de sobrevivência. Imagine que neste momento um leão entre na sala. Nós dois sentimos uma ameaça, e em nosso cérebro se ativa a chamada resposta centralizada ao estresse. Isto ativa uma reação em cadeia por todo o seu organismo. Seu ritmo cardíaco aumenta, a tensão arterial sobe, o ritmo da sua respiração se acelera. Seus níveis de glicose no sangue disparam. Tudo porque você viu um leão ou porque recebeu um telefonema que o preocupou enormemente –ou qualquer forma de estresse psicológico que você possa imaginar.
P. E por que tudo isso acontece?
R. Porque seu cérebro prepara o resto do corpo para escapar dessa ameaça. Aumenta a glicose porque precisa de energia para correr. Seus níveis de cortisol sobem porque este hormônio tem muitos efeitos no sistema nervoso. Dentro do seu cérebro há mudanças radicais; sua memória e seu raciocínio ficam marcados pela ameaça. Você nunca a esquecerá. Perde o apetite e esquece completamente o s**o. Praticamente todas as áreas cerebrais são afetadas. Todos estes sistemas basicamente se desequilibram. É algo normal, uma resposta saudável. Se sobrevivermos à ameaça, ou percebermos que o leão era de mentira, o sistema deve se desativar e voltar ao equilíbrio. O mais importante desta resposta ao estresse não é se ativar, mas ser desligada a tempo. E muita gente não controla bem este processo. São essas pessoas que podem desenvolver doenças relacionadas ao estresse.
O tratamento mais cientificamente provado é o exercício físico”
P. Que doenças são essas?
R. Muitas; não só psiquiátricas, como a depressão, a ansiedade e os transtornos alimentares, mas também outras do metabolismo, como diabete, obesidade e doenças do sistema imunológico. Sabemos bastante bem por que o estresse pode provocar transtornos psiquiátricos, mas nos escapa por que pode afetar a diabete e a obesidade. E aqui é importante se perguntar por que há pessoas cujo trabalho lhes produz estresse crônico, ou por que tem gente que vive um trauma como uma explosão, a guerra ou um estupro e desenvolvem transtornos, enquanto outras vivem o mesmo e estão sãs. Os cientistas vêm há 100 anos se perguntando por que as pessoas estão doentes. Já é hora de nos perguntarmos por que a maioria da população está saudável. Como suportam, como fazem para resistir ao estresse?
P. Vocês já descobriram algo sobre como aguentam?
R. Estamos vendo que não é uma imagem espelhada. Há genes e mecanismos moleculares que protegem e que são muito diferentes dos outros que predispõem a adoecer. Se pudermos identificar ambos, talvez possamos reproduzi-los e ajudar a curar os doentes.
P. A predisposição a adoecer por estresse é genética?
R. Sabemos que há um componente genético que passa de pais para filhos nas famílias. Cada um de nós temos predisposição genética a sofrer alguma doença, seja depressão, Alzheimer ou câncer. A esquizofrenia, por exemplo, é genética em até 75%. Não é sua culpa, são os genes que você herdou dos seus pais. A depressão talvez seja genética em 50%. Quem decide se você a sofre ou não? O ambiente. O que você bebe, o que fuma, o que come, o que respira e seu nível de estresse. E, dentro do ambiente, o fator de risco mais importante é sem dúvida o estresse.
P. Poderia citar um exemplo?
R. Imagine que você tem um gêmeo idêntico. Têm as mesmas predisposições genéticas. Mas você cresce em um bairro acomodado de Madri, e ele numa zona de guerra. A probabilidade de que ele sofra de depressão é muito mais alta. O ambiente pode detonar uma doença em diferentes momentos da vida. Pode acontecer quando adulto, mas também quando adolescente ou inclusive quando criança ou bebê, até mesmo quando se é um embrião no ventre de sua mãe. Se sua mãe sofrer estresse, pode transmitir sinais moleculares que o tornarão mais suscetível de sofrer um transtorno ao longo da sua vida.
Quando a pandemia acabar, passaremos anos vendo gente com sintomas pós-traumáticos, depressão, ansiedade, por causa dela”
P. É mais perigoso sofrer estresse nas etapas iniciais da vida?
R. Sim. Depois o mecanismo adquirido pode ser ativado em qualquer momento. Você pode ter uma infância e juventude completamente normais e de repente cair em depressão ou sofrer ansiedade por algo que lhe aconteceu. Pode ser um estupro, pode ser a perda de um ente querido, um acidente, a guerra. Esse evento ativará o interruptor genético que você tinha desde que era um embrião.
P. Já é possível identificar essas marcas genéticas?
R. Estamos melhorando muito na hora de reconhecer estas marcas, estas predisposições. Podemos tentar medi-las em idades precoces. Na verdade, não são marcas genéticas, não estão nas letras do seu DNA. É o que chamamos de epigenética, modificações químicas que estão sobre seu DNA. O ambiente cria estas marcas e estas modificam o funcionamento de seus genes. Agora já podemos ler tanto o genoma, feito de DNA, como o epigenoma.
P. Já é possível identificar quem tem mais risco de sofrer de doenças relacionadas ao estresse?
R. Ainda não. Há mutações genéticas que multiplicam o risco de sofrer câncer de mama, e essas as conhecemos muito bem. Em depressão, ansiedade ou esquizofrenia, temos alguns quantos marcadores, mas não bastam para explicar a maioria de casos. O mesmo ocorre com o autismo. Estamos trabalhando nisso. Possivelmente no futuro poderemos sequenciar o genoma das pessoas, por exemplo dos soldados, e saber quais não podem combater porque têm um risco alto de ficar traumatizados.
P. Você conta frequentemente que os fármacos atuais contra a depressão e a ansiedade são os mesmos que há 50 anos...
R. Assim é. A maioria é de dr**as baseadas em mecanismos descobertos há meio século. O problema não é que sejam antigos, mas sim que estão deixando de funcionar. São os inibidores seletivos da recaptação de serotonina, como o Prozac e outros. Há até 35% de pacientes aos quais eles não fazem efeito. O tratamento, além disso, demora entre cinco e oito semanas em começar a dar resultados. E inclusive quando o fármaco funciona acarreta efeitos secundários muito graves, como enxaqueca ou disfunção sexual, coisas com as quais você não quer conviver. Precisamos de novos tratamentos. E a única forma de consegui-los é entender melhor o cérebro. Precisamos compreender o funcionamento de um cérebro saudável e de outro doente.
P. A que distância estamos de poder imitar esses mecanismos genéticos de resistência ao estresse?
R. É difícil dizer. Fizemos muito progresso nos últimos 10 anos. Mas é preciso entender que falamos de doenças que envolvem muitos genes ao mesmo tempo. Além disso, falta muito para medirmos bem o efeito nocivo do ambiente. As combinações são quase infinitas. Sua depressão e a minha podem nos dar os mesmos sintomas, mas podem ser completamente diferentes em nível genético e ambiental, os mecanismos são diferentes. É possível que haja 100 tipos de depressão diferentes. Então, a primeira coisa é fazer diagnósticos melhores.
A maioria é de dr**as (para depressão ou ansiedade) é baseada em mecanismos descobertos há meio século”
P. Como é possível melhorá-los?
R. Atualmente os psiquiatras se baseiam no que o paciente lhes diz. Você me conta o que acontece com você, eu estudo seu comportamento, vou ao manual de doenças mentais, o DSM-5, e digo que você está deprimido. Sem um exame de sangue nem um exame de imagem do seu cérebro nem outras técnicas. Não tenho nenhuma forma quantitativa de estudar seu caso. É brutal se você comparar com o câncer, onde posso fazer uma biópsia do seu tumor, sequenciar seu genoma e o de seu câncer, selecionar a melhor terapia para o seu perfil. Com a depressão é o mesmo para todos. A depressão e a ansiedade são umas três vezes mais frequentes em mulheres que em homens, então por que tratamos os dois do mesmo jeito? Precisamos personalizar o atendimento, e para isso é preciso reclassificar as doenças mentais e introduzir métodos de diagnóstico quantitativo e novos tratamentos em função do paciente.
P. O ambiente do mundo desenvolvido deixa cada vez mais gente estressada ou sofrendo de depressão e ansiedade?
R. Os números falam por si. Esta pandemia foi um grande exemplo: falou-se muito de seu impacto físico, mas nem tanto das cicatrizes psicológicas que deixou. Quando ela acabar, passaremos anos vendo gente com sintomas pós-traumáticos, depressão, ansiedade, por causa dela. Os hospitais psiquiátricos estão lotados. A quantidade de adultos, jovens e inclusive crianças com transtornos psiquiátricos é esmagadora. A paralisação, o fechamento de negócios, a morte de seres queridos, a simples preocupação por seus familiares ou seus filhos. O impacto da pandemia na saúde mental é descomunal, e não se fala suficientemente disso. Os governos não investem muito em saúde mental, não há suficientes leitos, psiquiatras, psicólogos clínicos.
Fonte: https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-11-29/temos-que-entender-por-que-ha-criancas-de-7-anos-que-ja-querem-se-suicidar.html