30/05/2019
Um importante ponto a ser observado atualmente, e o texto é bem explicativo o que ajuda na compreensão tanto do processo analítico, como de escolha de analista.
LUGAR DE ESCUTA E LUGAR DE FALA
Supor que analista deva ser mulher para atender mulheres é confundir lugar de escuta com o de fala
Um paciente quer saber, como condição para começar sua análise, três coisas: se acredito em Deus, se já tive depressão e se tenho filhos. Gênero e idade ele pôde deduzir sozinho. Outro me pergunta se já fui abandonada, fiz ab**to ou sou lé***ca.
O que essas pessoas podem estar buscando quando fazem tais perguntas? Entre outras questões, a garantia de que serão entendidas. De que poderei de fato compreender suas motivações e sofrimento. A lógica é de que se você viveu algo que eu vivi (divórcio, migração, doença degenerativa…), deve ter experimentado a mesma coisa que eu e, portanto, me compreenderá.
Quantas vidas um analista teria que ter vivido para poder escutar aquele que chega a seu consultório? Como em “Orlando” de Virginia Wolf, teria que nascer homem e depois tornar-se mulher? Teria que ser judia, alcoólatra, estar na menopausa?
Talvez tivesse que fazer um cartão no qual constasse: s**o feminino, mulher, heterossexual, um divórcio, duas filhas, branca, ateia… facilitando que pacientes do s**o feminino, mulheres, heterossexuais… o escolhessem?
Acontecimentos e experiências supostamente comuns incidem sobre sujeitos únicos. Dez mulheres que foram atacadas sexualmente terão dez experiências distintas: tornar-se frígida, elaborar o trauma, psicotizar e criar uma ONG em defesa das mulheres são saídas possíveis entre inúmeras outras. Se o analista tiver sofrido ele mesmo um estupro e usar sua experiência como referência, será incapaz de escutar seu paciente.
Só o sujeito saberá pelo que passou e só uma escuta isenta pode ajudá-lo a nomear sua experiência única. E haja análise do analista para separar suas histórias das dos seus pacientes, guardando para si seus próprios julgamentos e opiniões. Exercício perene, que faz da formação de um analista um campo de contínua reflexão e crítica, em sua análise, com supervisão, e com a teoria. Não menos importante é estudo das questões de seu tempo —como as condições históricas da violência contra a mulher, por exemplo.
No entanto, não podemos confundir o lugar de escuta de um analista com seu “lugar de fala” enquanto sujeito. “Lugar de fala” é um conceito que trata de visibilizar a experiência pessoal de sujeitos tolhidos em seu direito de expressão por questões de raça, classe e gênero. Baseia-se em privilegiar a voz do sujeito que vive a dura realidade de ser mulher, transexual, negro ou pobre, entre outros, e é direção política incontornável de quem se atreve a lutar pela democracia hoje — Marielle sempre.
Mas supor que o analista deva ser negro para atender negros ou ser lé***ca para atender lé***cas é apostar na experiência pessoal do analista e confundir lugar de escuta com lugar de fala. Se existem pessoas propondo a “cura homossexual” (devidamente caçadas pelos conselhos de psicologia) isso se deve ao fracasso da escuta — a ausência total dela — e não ao fato de serem heterossexuais.
Calhou de ser homem meu primeiro analista. Além da gratidão que lhe tenho pela competência com que conduziu minha análise, tive com ele a oportunidade de testemunhar a ética na qual se sustenta o lugar do analista. Ética que lhe permitiu, mesmo sendo homem, ser capaz de escutar minhas angústias ligadas à maternidade.
Por: Vera Iaconelli