03/10/2017
Escrevi esse texto e publiquei em meu perfil pessoal, não tinha intenção de publicá-lo aqui na página. Mas, dada a repercussão do fato com o museu, decidi compartilhar aqui também.
Aos pacientes que foram vítimas de abuso na infância, minha solidariedade! Precisamos proteger nossas crianças de situações perigosas e ambíguas sempre!
"SOBRE O HOMEM NU, A ARTE, A PEDOFILIA E A INFÂNCIA.
Tentarei ser lúcida. Deixe-me dizer de onde falo. Fiz parte de uma cia de dança durante anos da minha vida, participei de eventos, espetáculos, fóruns de discussão, cursos, oficinas. Já fui a muitos museus, inclusive ao MAM. Sou admiradora de arte, tenho muitos amigos artistas, atores, bailarinos, maquiadores, figurinistas, iluminadores, artistas plásticos, artistas circenses. Sou psicóloga. Atuo na área clinica e já atendi muitas crianças e adolescentes vitimas de abuso. Assisti ao vídeo. Li opiniões diversas a favor e contra. Li o posicionamento do museu e também me inteirei quanto ao contexto, onde, quando, como aquele homem nu se apresentou.
Não vou discutir o que é ou não é arte. Aliás, essa discussão é bem antiga! E, pra quem quiser discutir esse tema para além desta ocasião, tem uma série de bibliografias sobre. Não vou discutir a nudez em si. Nem se ela determina ou não intenções se***is. Essa questão também não é de hoje. Menos ainda vou entrar em posições políticas (direita X esquerda) ou posições religiosas (é "pecado" X não é "pecado").
Mas, quero discutir sobre a capacidade de análise crítica de uma criança de 4/5 anos. Essa criança, junto com sua mãe, num ambiente que lhe parece seguro, foi apresentada a uma cena incomum. Ela deve ter achado estranho uma pessoa pelada numa sala com vários outros ao redor, justamente por não ser corriqueiro. Mais estranho ainda o fato de outras pessoas estarem tocando naquela pessoa que não fazia nada, apenas permitia. Apesar de estranho, estava 'tudo bem'. Sua mãe estava ali, ninguém parecia estar fazendo algo agressivo ou ilegal. Não quero acreditar que essa mãe tenha tido a intenção de expor sua filha a um abuso, nem que o artista em questão tenha tido tal intenção (inclusive consta que havia sinalização na entrada da sala quanto ao seu conteúdo e não uma frase "traga seu filho para ser abusado por um artista"). Acredito mesmo que não houve intenção e penso que inúmeras vezes o nu mais atrapalha a intenção de uma obra do que ajuda, mas isso é só minha opinião. Contudo, o fato é que em virtude da pouca idade esta criança não conseguiria fazer a “análise artística” complexa que o momento propunha. Tão pouco fazer conexões com a obra "La Bête" ou críticas sociais quanto a erotização dos corpos e etc. Talvez tenha achado engraçado, talvez sentido vergonha pelo nu alheio. Mas entender mesmo o que se passava, acredito que não.
Mudemos o cenário para refletir. Se essa mesma criança, em casa, num ambiente potencialmente seguro (bem mais que o museu), vê seu tio, dindo, amigo da família ou padrasto nu e este lhe pede que o toque. Vocês acham mesmo que essa criança conseguirá fazer o raciocínio complexo necessário para concluir que "aquele dia lá no museu com a minha mãe, eu estava participando de uma intervenção artística, tocando um corpo nu desconhecido sem fins se***is. Mas agora, aqui, eu estou diante de um abuso sexual e não devo tocar esse corpo, pois isso está errado e é ilegal então devo gritar e fugir".
Acho muito difícil! Essa é a minha questão. Aquelas crianças, em virtude da pouca idade, não tem a capacidade crítica necessária para refletirem sobre o que lhes era apresentado. E sim, precisamos proteger as crianças sempre que possível de conteúdos que sejam complexos demais para sua idade, pois assim minimizamos prejuízos em seu desenvolvimento. É por isso que existe classificação indicativa no cinema, por exemplo.
Para mim, a entrada de crianças naquela sala deveria ser terminantemente vedada a titulo de proteção, independente de estas estarem ou não acompanhadas dos responsáveis. Simples. E nisso tanto o artista quanto o museu falharam. Alguém na porta da sala regulando a entrada poderia garantir isso. Pode ser que a menina nunca passe por uma situação abusiva, mas se passasse é possível que estivesse ainda mais vulnerável. Precisamos ensinar as crianças a dizer não a qualquer adulto que solicite toques inadequados. E relativizar o toque em um corpo nu para uma criança tão pequena pode ser confuso para ela. Quem nunca conversou com uma criança vítima de abuso, talvez tenha dificuldade em entender o nível desta "confusão mental".
Entendo a classe artística defendendo o nu enquanto arte. A relação que o artista tem com o corpo é diferente da maioria das pessoas. Também entendo a reação coletiva e os posts "contra a pedofilia" que tomaram conta das redes. Se você entra num banheiro público e vê um adulto nu com uma criança o tocando, você tira a criança primeiro e pergunta depois. Se você vê um vídeo de uma criança engatinhando de quatro tocando um adulto pelado, você não pensa em refletir sobre uma cena “artística”, você associa a cena a pedofilia quase que instantaneamente. É um julgamento automático e bastante compreensível. É uma cena que mobiliza muito. Então sim, queridos amigos artistas, as pessoas vão repelir primeiro e se pensarem, o farão bem depois. Aliás, que bom que a população reage a isso! Significa que são contra o abuso sexual infantil, ótimo! Logicamente isso não justifica as ameaças nem as agressões físicas que alguns grupos tem feito ao museu, bem como não justifica a solicitação de fechamento do museu. É o mesmo que quebrar a televisão pois ela mostrou uma cena que julguei inadequada sendo que posso apenas trocar de canal.
Um dia estas crianças crescerão e terão a capacidade de perceber quando há ou não um fim sexual em uma interação (com ou sem roupa), mas enquanto elas não tem, precisamos protegê-las evitando exposições a situações ambíguas (como esta) que possam favorecer futuras interações perigosas em outros contextos. Foi inadequado. Foi uma cena infeliz viralizada. E precisa ser evitado.
Aos amigos artistas, colegas e amigos psicólogos que queiram trazer outras óticas e contribuir com a discussão, fiquem a vontade..."
