02/06/2020
SOBRE AS MÁSCARAS
Inventamos as máscaras como dispositivos que nos ajudam a dizer quem somos e o que pensamos.
Possuímos várias máscaras que em suposto, nos representam. A máscara nos apresenta ao outro, num determinado momento, num contexto em que somos ‘obrigados’ a nos mostrar e revelar aos demais.
Dostoievski foi um grande escritor e psicólogo, ele mostrava, através de seus personagens, que a maioria dos homens em geral, se agarrava tão fortemente as suas máscaras que acredita nelas piamente, ou seja, eu sou a máscara, a máscara me representa perfeitamente, ele diz o que sou e o que penso.
Só que não.
A construção de nossas máscaras são um processo longo e doloroso, pois ela começa desde a infância, quando para nos sentirmos amados pelos pais, precisamos ser bons (seja bonzinho, f**a quieto, se comporte, menino feio, etc). Ser o que o outro quer que sejamos, esse é nosso primeiro imperativo que logo aprendemos e incorporamos como necessidade de vida e que nos obriga a utilizar as diferentes máscaras da aceitação). Depois outras máscaras virão, mais sofisticadas, ou seja, as que incluem o que pensamos e sentimos, e que, magicamente, as tomamos como nossa segunda pele.
A máscara oculta, esconde, transmuta o que somos em algo outro, que não queremos ver nem enxergar em maior profundidade. Por isso nos acomodamos em nossa vida de homens comuns, ou seja, desconhecidos e ignorantes de nós mesmos. É mais fácil, talvez representar, em assumir ideias que não são nossas como nossas, escolher estilos de vida que já estão prontos. A moda – o estar na moda não é isso? – é preciso seguir o fluxo, e o fluxo nos diz o que pensar, o que fazer, no geral.
Por isso nos contentamos em ser homens comuns, mais ou menos inteligentes, mais ou menos criativos, mais ou menos originais.
Um psiquiatra chamado W. Reich descreveu esse tipo como o ‘Zé-ninguém’.
Então as máscaras nos ajudam, são de grande ‘utilidade, numa sociedade dita utilitarista.
Com o advento do Covid, algo inusitado ocorreu, ou seja, fomos levados a fazer algo até então inusitado, para nós brasileiros, usar uma máscara para encobrir o rosto, ou seja, uma máscara encobrindo outras máscaras, aquelas que acabamos de descrever. Como pode isso: uma máscara encobrindo outra máscara.
Essa conjunção dada pelo vírus, nos ‘obriga’ a quebrar as maneiras mecanizadas (persona), de expressões do que somos e do que estamos sentindo, pois a expressão do rosto f**a prejudicada. Somos obrigados a prestar um pouco mais de atenção no outro: o que ele está dizendo? Não consigo entender, não vejo sua expressão, etc, etc.
Sobra então o olhar. O olhar que os poetas dizem ser a janela da alma, o olhar que tem de ser decifrado na conjunção mais sofisticada do ser, ou seja, o que vemos e o que nos olha de volta.
As entonações da fala e o olhar formam o que o outro nos oferece, aquilo que nos é dado a interpretar. O que vem do outro se torna mais enigmático.
Agora a máscara consegue encobrir até um sorriso, uma tristeza, um algo que f**a mais difícil de se revelar ao outro, e nos faz ingressar numa nova dimensão da expressividade humana. Poderíamos até dar um nome para isso: a expressividade recoberta.
Nesse momento singular de vida, revestida e recoberta por camadas de máscaras, f**aremos envoltos em quais questões? Será que continuaremos a gostar de nos recobrirmos com mais uma máscara? Ou será ainda que nos daremos conta de que a persona é útil em alguns momentos, mas não como defesa de nós mesmos e do outro o tempo todo.
Quando a retirarmos estaremos mais o que?
Mais felizes por não termos a obrigação de seu uso o tempo todo? Mais felizes por voltarmos as nossas máscaras anteriores, ou mais determinados a pensar que podemos mais, muito mais com relação ao uso de máscaras não só como defesa, adaptação, e que em podendo mais, podemos inclusive, sermos mais espontâneos e autênticos?
Para tentar responder a essa questão, temos que considerar um sentimento muito forte, que nomeamos como medo. Temos medo do nosso passado, temos medo de nossos ancestrais, temos medo dos mortos, temos medo do futuro, temos medo do depois da vida, temos medo do amanhã. Então temos um medo mais geral, que é o medo da vida e do viver.
O medo é paralisante, é Medusa in natura, e para vencer o medo, temos que confrontá-lo. A melhor forma de se confrontar os sentimentos, em geral, é toma-los como nosso e fazer dele uma imagem. Uma imagem com a qual possamos dialogar. Ao dialogar com a imagem que nos paralisa, podemos sair desse movimento reativo de defesa, e nos tornamos mais livres para agir sem tantos disfarces e subterfúgios.
Só resta pensarmos que o ‘corona vírus’, em toda a sua complexidade, nos dá também uma oportunidade e uma possibilidade de vida (não só a perspectiva da morte e do morrer), pois abre esse interstício, essa perspectiva paradoxal e trágica de que mesmo na morte, vida há.
José Ravanelli Neto
abril de 2020