15/10/2019
Análise Psicológica sobre o filme Coringa.
Excelente!! 👇🏻
Apesar da expectativa um tanto frustrada de violência, o enredo do filme Coringa foi absurdamente assertivo e brilhante ao optar por uma imersão profunda e perturbadora na perspectiva do vilão de Gotham em seu drama psicológico estrutural. Arthur Fleck, na desgraça da deformação dos afetos, da adoção, da relação ambígua e patológica com a mãe, nas negligencias e torturas, no distúrbio mental de humor, na solidão e abandono, no desajuste social, no desejo sexual suprimido, na tentativa de saber a verdade sobre si mesmo, nos afetos mal resolvidos – faz a passagem da psicose à psicopatia numa espécie de processo de composição e parto do Coringa. O tempo inteiro somos arrastados para a tensão da dissociação psicológica do personagem que vai perdendo a capacidade de trabalhar o que é simbólico e o que é real. O Coringa emerge do Arthur. Antes disso ele demonstrava empatia, cuidava da mãe, fantasiava um encontro romântico (que seria fundamentalmente positivo se fosse real) e um meio de ganhar a vida (importantíssimo a um homem nesta idade), buscava ajuda especializada, estava todo desgraçado, mas ainda tentava erguer-se de certo modo. A questão é que não era um sujeito desses bem quistos socialmente. Era doente. Um palhaço frustrado que não tem amigos ou próximos. Só suas fantasias. O seu delírio se torna sua realidade. Os inúmeros gatilhos muito bem trabalhados na atuação excepcional de Joaquim Phoenix, revelam a figura do psicopata no seu modus operandi. Os momentos de violência, salvo o primeiro que foi por legítima defesa (já com requintes de crueldade, porém ainda com preocupação social) são momentos de intensa descarga emocional numa espécie de catarse. A partir do assassinato da mãe (extremamente simbólico pela ruptura), ele não sente mais culpa ou vergonha, não entende mais uma figura de linguagem, ele é literal. A questão é que o distúrbio mental não configura o assassino. A crueldade é acima de tudo uma escolha. A loucura pode ou não encontrar a maldade. E esta é a chave do filme. No processo, para o Coringa nascer, o Arthur precisa morrer. Quando ele toma decisão de matá-lo, a maldade toma o lugar da loucura. Outra vez, a maldade é uma escolha. Ele poderia assumir sua tragédia e salvar sua circunstância. E se não ainda não pudesse escolhê-la como um prisioneiro de um campo de concentração, “pode-se tirar tudo de um homem exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher a própria atitude em qualquer circunstância, escolher o próprio caminho” (Viktor Frankl). Aqui esbarramos numa questão muito em alta nas análises sobre este filme e sobre o cenário real das discussões que a ele correspondem, as quais eu gostaria de contrapor: não é circunstancia que faz o assassino, nem o social que gera o psicopata. Quantos tiveram suas vidas desgraçadas e não viraram vilões e quantos por muito menos são Coringas? No final, temos o ápice do filme: o trauma de Bruce. Estamos tão impactados pelos traumas do Coringa que não percebemos que ali, exatamente ali, nasce o Batman. Novamente, a escolha. Aqui vemos a opção heroica que poderia ter sido o inverso, ou poderia simplesmente não ter sido nada. O contexto social, a maldade generalizada faz nascer o herói das trevas. E a maldade é sempre a mesma, sempre explorada nos mesmos escombros da alma, por isso que são os heróis que nos fascinam. Na trilogia, o Coringa é obcecado em transformar o Batman nele mesmo quando tenta fazê-lo matá-lo. Se assim fizesse torná-lo-ia mal. Apesar de namorarmos a figura do justiceiro, ele se transforma pouco a pouco naquilo que ele tanto deseja combater. A opção pelo heroísmo, o não fazer concessões com o mal, é que mantem o bem. O mal sempre existirá. Sempre haverá injustiça. O mundo é mal o sistema é falho, precisamos encarar essa realidade e não alucinar. Aqui um parênteses: quantos de nós não preferimos fantasiar e criar enredos absurdos ao invés de encarar a nossa realidade cruamente? O que não podem faltar são heróis. Aqueles que superam suas condições e tragédias pessoais e lançam-se a serviço de outros. É nessa transcendência que encontramos o sentido da vida e a força para suportarmos aquilo que escapa ao nosso controle. Lembre-se: somos o que escolhemos fazer com aquilo que nos foi dado; somos o que fazemos de nós mesmos.