31/10/2020
Distorções da Autoimagem
Bernardo Lynch de Gregorio
Médico Psiquiatra
Psicoterapeuta Junguiano
O entendimento que temos de nós mesmos, nossa autoimagem, é dada muito mais por uma noção psicológica de si, por nossa autoestima, do que por uma objetividade do corpo. Em outras palavras: nós nos enxergamos muito mais com nossa mente do que com nossos olhos. Assim, um distanciamento entre a percepção e a realidade é a regra. Por vezes este distanciamento é tal que determina uma distorção, chagando a ser patológico. Estas são as distorções de autoimagem.
Destas distorções, a mais comum e a mais conhecida é a Anorexia Nervosa. O quadro resume-se a uma diminuição importante da ingestão alimentícia. Não é uma falta de fome simples, como o nome poderia sugerir, mas uma atitude ativa da pessoa em se recusar a comer. A ideia é que a pessoa se vê obrigada a tentar emagrecer de toda forma, apesar de que na maioria das vezes este emagrecimento é totalmente desnecessário e até mesmo muito prejudicial. Algumas vezes, uma compulsão alimentar está associada e a pessoa não consegue se manter sem comer e apresenta episódios em que come em demasia. Quando isto acontece, uma culpa enorme aparece, que leva a pessoa a provocar o vômito e/ou a abusar de medicamentos laxantes ou diuréticos. Nestes casos, o quadro é conhecido como Bulimia.
Presente em 0,5 a 1,0% da população, é muito mais comum em mulheres do que em homens e atinge mais jovens. O corriqueiro é que tenha início ao redor dos 17 anos e, por incrível que pareça, quando se inicia mais precocemente, tende a ser de mais fácil tratamento ou a resolver-se por si só. O que preocupa bastante aqui é que pacientes com quadros de Anorexia Nervosa apresentam uma mortalidade maior do que 10%, ou seja: 1 em cada 10 pacientes com anorexia, morrem por este motivo. Um exemplo muito triste desta fatalidade é o caso da conhecida cantora norte-americana Karen Carpenter, que morreu por inanição em 1983.
As causas deste quadro são múltiplas e até certo ponto pouco conhecidas. A questão da autoimagem está diretamente ligada ao cerne da doença, já que a pessoa, subnutrida e perigosamente emagrecida, se olha no espelho e se percebe gorda. Os padrões estéticos da nossa sociedade aparecem então como um fator determinante. Em adolescentes, que sempre procuram a aceitação social, estas regras rígidas da estética são levadas bem a sério e podem muitas vezes desencadear um quadro de distúrbio alimentar. Junto com isso há uma tendência genética e outras vezes a Anorexia Nervosa pode ser o início de uma doença mais complexa como o Transtorno Afetivo Bipolar, por exemplo. A comorbidade com outros distúrbios psiquiátricos é comum: no mínimo ansiedade e depressão.
Outra distorção da autoimagem muito frequente na atualidade é a chamada Vigorexia, também conhecida como Dismorfismo Muscular ou Ortorexia. Apesar deste diagnóstico ainda não estar plenamente estabelecido pelas classificações médicas, acaba sendo na prática um quadro "contrário" à Anorexia: aqui o indivíduo tem uma necessidade pungente em aumentar sua massa muscular e ir em busca de um corpo "perfeito". O excesso de exercícios, de forma que a musculação acabe tomando o centro do interesse do sujeito, ocupando uma grande porcentagem de seu dia e o abuso de substâncias anabolizantes de toda espécie são os sintomas mais marcantes. A família, o trabalho, sua economia, seus relacionamentos, tudo é substituído pela obsessão em "crescer".
Não há uma valor exato para que se avalie a prevalência da Vigorexia na nossa sociedade, pela falta de critérios diagnósticos, porém estima-se que seja mais comum em homens e que cerca de 70% dos praticantes de musculação apresentem formas deste distúrbio, mais ou menos graves. Esta porcentagem é muito alta e deveras preocupante. Principalmente porque o abuso de substâncias anabolizantes pode levar a problemas físicos graves, tais como inibição de testículo (chegando a destruição definitiva das glândulas), hepatite tóxica, cirrose, pedras nos rins, aumento do densidade do sangue, facilitando AVCs e infartos, além de transtornos psíquicos como insônia, ansiedade e agressividade.
Mais uma vez as cousas recaem sobre os critérios estéticos vigentes e uma grande necessidade de aceitação social. O indivíduo imagina que se for "grande" será mais respeitado, conseguirá atrair mais pessoas e, em última análise, receberá mais atenção e afeto. Por isso o desespero por aumentar sua massa muscular. Porém, uma distorção de autoimagem é comum neste ponto e o sujeito sempre se percebe muito menor do que realmente é, sentindo-se fraco e magro. Não se sabe ainda se há alguma tendência genética ou interação com outras patologias.
Algumas vezes a Vigorexia é referida como "Síndrome de Adonis", devido ao mito grego que apresenta Adônis, filho de Zeus, como o mais belo dos mortais, merecedor de ser o quarto marido de Afrodite, deusa do amor e da beleza. A ideia corresponde, porém não totalmente, pois Adônis simplesmente era belo e não perseguia paradigmas. Talvez, do ponto de vista psicológico, esta síndrome tenha muito mais de Narciso: aquele outro jovem da Mitologia Grega, triste e depressivo, que se apaixonou por sua própria imagem.
No final do ano de 2017 e no início de 2018 foi apresentada por 6 meses no teatro Augusta a peça "Pedaço de Mim", de minha autoria e direção com Patrícia Rizzo e Lara Kadocsa. Esta peça tratava sobre diversas formas de automutilação e incluía distúrbios alimentares. Insiro aqui algumas passagens que podem ilustrar bem os problemas da autoimagem: "Jejum e abstinência. Ah! Aqueles sacrifícios que a gente faz para perder peso, né gente? Fazer dieta pra emagrecer até que é simples: é só cortar açúcar, frituras, queijos, massas, maionese, molhos, bebidas alcoólicas, pães, biscoitos, refrigerante, doces... e os pulsos! Além das dietas, hoje temos injeções, procedimentos estéticos e cirurgias! Tudo muito moderno: arranca-se a pele, suga-se a gordura, mutila-se o estômago, inserem-se pedaços de silicone. Melhorar a forma física! Musculação, ginástica... Tem que malhar! Temos atualmente determinados mandatos: o homem moderno tem a obrigação de ser no mínimo jovial, alto, forte, másculo, com aparência esportiva, potente (sexual e socialmente), bronzeado de sol (como prova de que tem tempo livre), bem sucedido econômica e socialmente (símbolos de status e poder), superficialmente culto (não exagere aqui!), elegante (segundo os critérios da moda) e (fundamental) ter ao seu lado uma mulher dentro dos padrões sociais. Já a mulher moderna tem a obrigação de ser jovem (ou parecer jovem), ter seios fartos, cintura extremamente fina, absolutamente nenhum acúmulo de gordura subcutânea, ausência completa de sinais na pele (tais como rugas, manchas, varizes ou - ARGHT! - celulite), lábios carnudos, olhos marcantes, musculatura rígida, sensualidade (sexy sem ser vulgar!), habilidades domésticas (bela, recatada e do lar!), personalidade infantilizada e ostentar ao seu redor todos os símbolos possíveis de status (como prova do sucesso de seu companheiro, é lógico). Na falta de qualquer uma destas coisas, o exagero das demais, pode levar a uma compensação. Por exemplo (aponta alguém da plateia): a senhora ai! Se as suas habilidades domésticas são (digamos) sofríveis, colocar 500ml de silicone em cada têta resolve tudo! (ri e gira pelo palco). Parece que estes são os paradigmas universalmente aceitos na atualidade: caso alguém se coloque fora destas regras rígidas, terá que enfrentar a rejeição social. E isso, acreditem, é DURO!". " Quem não conhece alguma jovenzinha que sofre de anorexia nervosa? Quem nunca viu aquele sujeito bombado, sarado, que apelou desesperadamente para substâncias químicas para "crescer" e acabou com hepatite tóxica ou câncer de pâncreas?".