27/03/2015
Pessoas queridas,
análise do filme O RUÍDO DO GELO que faz parte do meu capítulo do nosso novo livro sobre câncer. O título do capítulo é UMA TENTATIVA DE COMPREENSÃO DO CÂNCER POR INTERMÉDIO DE FILMES. Espero que voces apreciem. Paz e bem!
Filme – O Ruído do Gelo ( Le Bruit des Glaçon)
Distribuição: Universal
Direção: Bertrand Blier
Fotografia: François Catonné
Montagem: Marion Monestier
Direção de arte: Patrick Dutortre
Música: Valerrie Lindon
Elenco principal: Jean Dujardin, Albert Dupontel, Anne Aluaro, Myrian Boyer
I – Descrição da Trama
A trama ocorre na cidade de Nimes no Sul da França. Charles vive em uma mansão com a empregada Sofia. Ele é alcoolista e toma diariamente inúmeras garrafas de vinho branco que estão sempre enfiadas em um balde gelo, daí inclusive o título do filme.
Em dado momento tocam sua campainha e quando atende e pergunta quem é o visitante recebe a informação estonteante: “Eu sou seu Câncer e creio que seria bom nos conhecermos melhor”. De início Charles f**a estupefato com a informação, mas aos poucos de dá conta de que isso é realidade, aquele homem é realmente seu câncer.
O diálogo de ambos de início é ácido, mas aos poucos Charles aceita aquela figura indesejável ao seu lado. O Câncer lhe diz que não é visto pela maioria das pessoas, apenas pelo paciente e por aqueles que o amam muito. Sofia consegue visualizar o Câncer, coisa que a namoradinha ocasional de Charles, Eugenia, não consegue. Sofia começa também a conviver com o Câncer, e aos poucos vai mostrando a Charles que o amava muito apesar de se achar insolente por esse amor. Charles dialoga com o Câncer e concluí que é melhor pedir para Eugene ir embora para tentar algo com Sofia. Essa vai embora e se despede afetuosamente de todos.
Sofia também conhece uma mulher que chega a sua casa e também se identif**a como sendo o seu Câncer. Diz que inicialmente instalou-se em seu seio, mas que aos poucos irá tomar todo seu corpo.
É mostrada uma cena em que Charles relembra o momento em que sua esposa o deixou, alguns anos atrás juntamente com seu filho, Stanislav.
Charles conta ao Câncer que desde que sua esposa o havia deixado não consegue mais escrever, e de que nada adiantava continuar vivendo. E que por essa razão bebia tanto, precisa estar sempre bêbado para estar atordoado e não sentir as vicissitudes da vida. Cenas são exibidas com Charles sofrendo dores de cabeça lancinantes com o delírio de alegria do Câncer. Esse diz o tempo todo que é invencível, que destrói todas as células saudáveis e que resiste a todos os tipos de tratamento, seja quimioterapia, radioterapia ou qualquer outro.
Concomitantemente são exibidas cenas em que Sofia igualmente conversa com seu Câncer, e o mesmo discurso de destrutividade permeia os diálogos. Diante do agravamento do estado de saúde de Charles, sua ex-mulher traz seu filho para passar alguns dias com ele. Ela prefere f**ar em um hotel, pois sente algo muito estranho acontecendo na casa. Stanislav não consegue dormir na noite e vai até o quarto de Sofia, e os depois tem relacionamento afetivo sexual. Na manhã ele conta ao pai sobre a sensação extrema de felicidade que estava sentindo depois dessa noite de amor, e pergunta ao pai se ele estava com ciúmes. Ele diz que não sente ciúmes e que estava muito feliz com a felicidade do filho. A mãe vem buscá-lo e ele se despede do pai desejando que o pai não morra.
Charles e Sofia começam a se relacionar amorosamente e em certo momento vão objetos pessoais e fornece a dois jovens informações sobre seu endereço e uma escultura de Rodin que Charles possuía. Os jovens vão até a residência na noite e trocam tiros com Charles, e tanto esse como Sofia quedam com ferimentos. Nesse momento, tanto o Câncer de Charles como o Câncer de Sofia saem em disparada dizendo que suas missões estavam terminadas. Na sequência, Charles e Sofia se levantam retiram do corpo os ferimentos artificiais e riem. Na sequência vendem a casa e saem em viagem em uma suntuosa embarcação. Esse final surpreende, pois o diretor Blier nos deixa em uma incógnita, se eles realmente morreram e se livraram do Câncer, ou se então se libertaram por terem encontrado sentido para suas vidas.
II – Análise Cinematográf**a e de Conteúdo
Temos um filme que se não pode ser considerado magnífico em termos meramente artístico, certamente é filme imperdível pela riqueza dos detalhes envolvendo a presença do câncer na vida humana. Diríamos até que se trata de filme imprescindível a todos que direta ou indiretamente lidam com o câncer, tanto profissionalmente como pelo contato com a doença em familiares ou amigos. Um filme cuja grandiosidade se dá pela maneira criativa como Blier nos mostrou o câncer. Algo tão surpreende e ao mesmo tempo fascinante que nos deixa atônitos e estarrecidos com o desenvolvimento da doença sendo anunciado pelo câncer travestido na forma humana.
Esse filme passa ao longo de qualquer conotação mercadológica e por essa razão apenas foi exibido durante a ###V Mostra Internacional de Cinema de São Paulo não tendo sequer entrado no circuito comercial, ainda que apenas nas salas destinadas a exibição de filmes de arte.
Os que buscam ação, aventura ou outra forma de entretenimento em filmes, seguramente não irão gostar dessa trama. Mas ao contrário, todos aqueles que estão interessados em se aprofundar nos detalhamentos da condição humana tem nessa trama uma verdadeira obra prima a exibir os contornos do sofrimento humano em uma de suas facetas mais desesperadoras, a luta contra o câncer.
Um filme raro cuja preciosidade artística é justamente mostrar o requinte da arte nos detalhes enfeixados na destrutividade promovida pelo câncer. A criatividade da trama é tão eloquente e envolvente, que qualquer outro detalhe que se queira arrolar sobre critérios artísticos perdem a razão de ser. O insólito do câncer argumentando com o próprio paciente é algo por demais estrondoso. E na medida em que está a mostrar os passos da destruição em diálogos e sequências ácidas, qualquer outro balizamento a exigir recursos técnicos mais apurados se perde no vazio.
A trilha musical é composta por canções francesas e estadunidenses conhecidas do público sem qualquer outro esmero. Algumas peças de música clássica também são inseridas como fundo melódico de algumas cenas, mas igualmente sem relevância. A música ocupa apenas um papel secundário. Aliás, tudo é secundário, fotografia, montagem, direção artística, enquadre de câmeras, tudo absolutamente é secundário. A grandiosidade desse filme é justamente a justaposição das imagens do câncer com o paciente. A presença do câncer em todos os momentos da vida do paciente seja em suas relações se***is, refeições, enfim tudo que se quiser arrolar, o câncer está presente dialogando incessantemente com o paciente. E isso simplesmente faz desse filme algo único, um requinte de detalhamentos que o faz imprescindível a qualquer discussão envolvendo a temática do câncer e que faça intermediação por filmes. Trata-se de obra indispensável a qualquer filmoteca que tenha como predominância a compreensão da condição humana em filigranas de desespero e dor.
Uma obra em que a condição humana dialoga com sua própria doença, e pode escutar as razões de seu adoecimento, na realidade escuta de si mesmo. O câncer reverbera situações de sofrimento e abandono com a saúde, mas é o paciente ao tentar argumentar que dá as verdadeiras razões da causa de seu sofrimento e, por assim dizer, do abandono da vida. Simplesmente fantástico!