22/10/2025
Beau Tem Medo: o horror do amor que não liberta
por Eduardo Villarom Helene, psicanalista.
“A neurose é o preço que pagamos por amor.”
(parafraseando Freud)
Há filmes que não se assistem. Eles nos invadem.
Beau Tem Medo, de Ari Aster, é um desses mergulhos em que o espectador se perde.
Mais do que um suspense, é uma jornada psíquica, uma experiência em que o medo não é um tema, mas uma estrutura.
O medo de existir. O medo de desejar. O medo de ser amado demais.
Ari Aster constrói um universo inteiramente freudiano.
O filme é o mapa do inconsciente de um homem aprisionado pela culpa e pelo amor.
A cidade, a casa, o sótão, o tribunal, cada cenário é um cômodo de sua mente.
Nada está fora. Tudo acontece dentro.
Beau é o sujeito que não suportou nascer.
Tudo nele é regressão, dependência e culpa.
E o que o aprisiona é o mesmo que o formou: o amor da mãe.
A mãe que ama demais
Freud escreveu em Introdução ao Narcisismo que os pais amam os filhos como o renascimento de seu próprio ideal.
Em Beau Tem Medo, essa ideia se transforma em pesadelo.
Mona Wassermann, a mãe de Beau, o ama como espelho.
Ela não o vê como alguém, mas como parte de si.
Seu afeto é absoluto, mas sufocante.
Seu amor é uma prisão dourada.
Beau vive num campo de amor e culpa.
Ele teme existir fora desse vínculo, como se viver por conta própria fosse um crime.
Sua culpa não vem de um ato, mas do simples fato de querer ser outro.
E é essa confusão entre amor e controle que Ari Aster transforma em terror.
A mãe de Beau não é apenas uma mulher.
É a figura do amor que impede o nascimento.
Ela é a origem e o cárcere.
Diante dela, Beau continua criança.
O adulto que vemos é apenas um corpo habitado pela infância.
O pai ausente e o falo que retorna
No mundo de Beau, o pai é apenas uma lembrança, uma sombra.
E quando a lei do pai não existe, o falo retorna como monstruosidade.
A cena do sótão é a materialização desse retorno.
O p***s gigante e vivo, guardado dentro da casa materna, é o símbolo grotesco do pai que nunca foi simbolizado.
O sótão é o inconsciente, o lugar do reprimido.
Lá está o falo, o poder, a lei, mas sem palavra.
A mãe o mantém guardado, como quem domina o que deveria ser a autoridade paterna.
O pai foi devorado.
E o filho cresce sem referência, preso ao amor que não reconhece limites.
Quando Beau encontra essa figura, encontra o interdito.
É o confronto com o pai, com o poder e com o desejo.
Mas o pai, aqui, já não é símbolo.
É carne. É horror.
O inconsciente perdeu a metáfora e devolveu o real.
Desejo e culpa
Quando Beau reencontra Elaine, o amor de juventude, a fantasia do desejo possível reaparece.
Mas o desejo em Beau é sempre acompanhado pela culpa.
O encontro amoroso termina em morte.
O prazer é seguido pela punição.
Freud explicaria isso como o conflito entre Eros e Tânatos.
O amor e a destruição caminham juntos.
O desejo de Beau é, ao mesmo tempo, desejo de viver e medo de morrer.
A mulher amada é o retorno da cena edípica: o amor proibido, o prazer acompanhado de culpa.
Amar fora do olhar da mãe é trair o amor absoluto.
E toda traição exige castigo.
O analista que não escuta
Nem mesmo o psiquiatra de Beau oferece refúgio.
Com sua fala calma e seu tom técnico, ele simboliza o superego disfarçado de cuidado.
Em vez de escutar, diagnostica.
Em vez de acolher, controla.
Ele conversa com a mãe de Beau pelas costas do paciente.
O consultório torna-se um prolongamento da casa materna.
É o ventre da dependência, travestido de cura.
Freud dizia que o superego nasce da internalização da autoridade parental.
Aqui, ele veste jaleco branco e prescreve remédios.
O analista é a voz da normalidade.
O mesmo olhar moral da mãe, agora legitimado pela medicina.
O julgamento e a sentença
No desfecho, Beau é levado a julgamento.
A cena é de uma beleza cruel.
A mãe está lá, viva, no centro da acusação.
A plateia é muda, mas o olhar dela basta.
Beau não é julgado por um crime, e sim por existir.
O tribunal é o palco do superego freudiano: a consciência que acusa, pune e vigia.
Freud afirmava que o superego é o herdeiro do amor e da culpa.
Em Beau Tem Medo, essa herança é literal.
A mãe é a lei.
O amor é a punição.
A sentença é o retorno ao útero: morrer é voltar para ela.
O medo como herança do amor
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud escreveu que pagamos com culpa pelo avanço da consciência.
Ari Aster parece responder: pagamos com medo por ter amado demais.
O medo de Beau é o medo de todos nós.
O medo de decepcionar, de perder o amor, de se tornar real.
O horror do filme não é sobrenatural.
É íntimo, cotidiano, infantil.
É o medo de sair do amor que nos formou.
O medo de existir por conta própria.
Beau teme o olhar da mãe, mas teme ainda mais perdê-lo.
O filme é, no fundo, a metáfora do sujeito que não atravessou o Édipo.
Que vive prisioneiro do amor e nunca conheceu a lei.
A culpa é a herança desse amor que não libera.
E o medo, o sintoma que o mantém vivo.
O terror de Beau Tem Medo não está nos monstros nem nas alucinações.
Está naquilo que Freud mais compreendeu sobre o humano:
que o amor pode ser o disfarce mais eficaz do controle,
e que a liberdade, muitas vezes, assusta mais do que a prisão.
O medo de Beau é o medo de todo sujeito diante da própria liberdade: o terror de existir fora do amor que o formou.
Sobre o autor
Eduardo Villarom Helene é psicanalista e aprendiz de escritor.
Dedica-se ao estudo das relações entre inconsciente, cultura e cinema.
Acredita que o cinema é uma das formas mais puras de o inconsciente continuar falando, mesmo quando o sujeito tenta silenciá-lo.
Filme disponível no Prime Vídeo.
Elizabeth Queiroz: PSICOTERAPIAS INTEGRADAS : 1199772 6039.
CRP:06/116408.