15/11/2025
O Gato e a Voz Invisível
A tarde escorria devagar pela janela do quarto de Carlina, trazendo consigo cheiro de mar e um fio de vento que fazia balançar levemente os pôsteres de anime na parede.
Sobre a mesa havia cadernos de matemática, um estojo estufado de canetas coloridas e o notebook com Minecraft aberto pela metade, como uma porta para outro mundo.
Mattia estava sentado à sua frente, composto, os longos cabelos escuros presos atrás das orelhas; mantinha por perto um livro de astronomia com um marcador em forma de estrela.
Pasqualino, o gato meio selvagem de Carlina, circulava como um pequeno soberano impaciente. Saltou na cadeira, depois na mesa, e então decidiu que a tarefa mais urgente do universo era mordiscar a ponta do caderno de italiano.
— Pasqualino, não! — disse Carlina, puxando o caderno.
O gato apertou os dentes e puxou de volta. Mattia riu baixinho.
— Ele tem personalidade, o senhorito — comentou. — Parece que entende tudo… e que não se importa com nada.
Carlina suspirou, arrancando o caderno de sua boca, e coçou a cabeça dele.
— É um pestinha. Mas eu o amo assim mesmo.
Começaram a fazer os deveres de matemática, entre cadernos amassados e risadas. Mattia explicava com calma, desenhando números claros. Carlina tentava acompanhar, mas o olhar escapava sempre além da janela, para o azul que ficava mais profundo.
— Às vezes eu penso que existe algo a mais, alèm das estrelas — murmurou, sem tirar os olhos do céu. — Como se o universo tivesse um segredo esperando para ser entendido.
Mattia fechou o livro com um sorriso.
— Sempre existe algo a mais. Até na ciência. Cada resposta abre uma nova pergunta. E a vida… — levantou o olhar para a janela — …a vida não termina no que tocamos. É como a luz das estrelas mortas: continua viajando.
As palavras ficaram suspensas no ar, como uma p**a que ganha altura. Carlina se ajeitou, sentindo dentro uma pontinha de emoção. Algo acendeu na sua memória.
— Espera — disse de repente, levantando-se. — Tem um livro. Eu já o vi um monte de vezes na estante da mamãe e do papai.
Correu pelo corredor e voltou com um volume de capa simples, gasta: O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.
Mattia levantou as sobrancelhas, interessado.
— Já ouvi falar, mas nunca li inteiro.
— Nem eu — admitiu Carlina, colocando-o sobre a mesa com respeito. — Mas lembro que a mamãe uma vez me disse que aqui fala também de outros mundos habitados. Das vidas que existem no universo.
Folhearam juntos o índice, depois as páginas, guiados por um tipo de intuição fresca.
Os dedos de Carlina deslizavam pelos parágrafos como quem procura uma frase já conhecida. Mattia, rigoroso, lia em voz alta os subtítulos, tentando se orientar.
Pasqualino, entediado pela falta de atenção, subiu em cima do livro e se deitou atravessado, bem em cima do capítulo que procuravam.
— Com licença, senhor pachá — sussurrou Mattia, empurrando o gato alguns centímetros.
Encontrou uma passagem que falava da pluralidade dos mundos, de como Deus não teria criado o cosmos para deixar partes vazias. Leu devagar, com seriedade.
— É bonito — disse Carlina. — Dá uma sensação de que não estamos sozinhos. Que a vida existe em todo lugar, de muitos jeitos.
Mattia concordou com um leve aceno.
— E que tudo tem um sentido. Mesmo quando a gente não entende na hora.
Foi nesse instante que o pelo de Pasqualino se arrepiou.
O gato se levantou de um salto, rígido, os olhos fixos no canto do quarto, perto do armário. Soltou um sopro longo, baixo, quase um rosnado. A cauda chicoteou o ar, as orelhas coladas à cabeça como asas dobradas.
Carlina sentiu um arrepio percorrer sua coluna. O quarto ficou mais silencioso do que parecia possível, como se os sons tivessem se escondido debaixo da cama.
O cheiro de mar chegou mais forte, sem que se entendesse de onde vinha.
— Mattia… — sussurrou.
Ele olhou para ela. Não via nada, mas seu rosto ficou atento, uma calma verdadeira, não fingida, mas escolhida.
Colocou a mão aberta sobre O Livro dos Espíritos, como se quisesse enraizar o instante.
— Respira — disse em voz baixa. — Se o Pasqualino reagiu assim, talvez… vocês não estejam sozinhos. Não tenha medo.
Carlina inspirou lentamente, buscando força dentro da própria confusão. Ela já estava acostumada a perceber presenças; às vezes eram lampejos de luz, às vezes sombras tremulantes. Mas cada vez era como a primeira.
Virou-se para o canto do quarto.
Havia um garoto.
Evocado não pela visão normal, mas por aquela segunda visão que ela aprendia a reconhecer desde algum tempo.
Ele estava de pé, como quem não sabe onde se sentar, e parecia procurar um som que não chegava. Seu rosto tinha um véu de tristeza nova, daquelas que não se pode medir nem explicar. Os olhos vagavam, incrédulos.
Pasqualino deu um salto na direção do canto, mas parou, hesitante, como se um limite invisível segurasse suas patas.
Soprou outra vez, depois soltou um miado agudo, quase um chamado.
Carlina engoliu em seco.
— Tem um garoto — disse baixinho, mais para si mesma do que para Mattia. — Ele está aqui… e não sabe que…
A palavra lhe faltou, como se o pensamento tivesse se perdido num nó de emoções.
Mattia não pediu detalhes.
— Fala com ele com delicadeza — sugeriu. — Lembra do que a gente leu: a vida continua. Diz isso para ele.
Carlina deu um passo à frente. Sentiu a presença como ar frio numa face quente.
— Eu te vejo — sussurrou, sem mover os lábios. — Você não é invisível. Não para mim.
O garoto estremeceu, como quem desperta de um sono pesado.
Ele voltou o olhar para a voz que não era voz. A princípio pareceu mais assustado, depois um certo alívio lhe escorreu pelos ombros.
¬-- Por que ninguém me escuta?
A pergunta não foi um som, mas chegou nítida.
--Por que tudo está escuro?
Carlina reuniu toda a coragem que usava no tatame quando o coração acelerava.
— Eu te escuto — respondeu. — E a escuridão… a escuridão não dura para sempre. Às vezes é só uma passagem.
--Uma passagem?
A palavra ficou suspensa como uma ponte recém-iniciada.
— Sim. Como quando a gente entra num túnel. No começo assusta, porque não vemos a saída. Mas a saída existe.
Pasqualino, naquele momento, tinha parado de bufar; estava encolhido no chão, mas os olhos continuavam tensos, brilhantes, fixos no garoto. A cauda se movia devagar, direita-esquerda, como um metrônomo.
Mattia, ao lado da mesa, abaixou a cabeça. Suas mãos se uniram numa prece que não precisava de fórmulas complicadas: era um pensamento, um ato de confiança.
Deus, acompanha-nos. Acompanha este menino.
Nada mudou diante dos seus olhos, mas por dentro ele sentiu se abrir uma paz firme, daquelas que não vacilam no primeiro vento.
Carlina voltou o olhar para o livro aberto. Leu outra linha e a tomou para si.
— A vida continua — repetiu. — Não acaba, muda de forma. Você não está mais no mundo material como antes, mas não está perdido. Você está sendo esperado.
--Esperado por quem?
A voz era ao mesmo tempo desconfiada e sedenta.
— Por quem te ama — disse Carlina. — Por quem sabe o caminho e virá te mostrar por onde ir.
O garoto hesitou.
--Estou com medo… acrescentou. Não entendo como… Eu estava de bicicleta… e depois…
A memória caía como chuva quebrada.
— Você não precisa entender tudo agora — sussurrou Carlina. — Agora só precisa saber que não está sozinho.
Ela ergueu os olhos instintivamente para cima. Não para o teto, mas para um espaço que não se mede em centímetros. E, ao fazer isso, sentiu a qualidade do ar mudar outra vez, como quando uma janela se abre e um oxigênio novo entra.
Uma presença se fez distinta.
No começo, Carlina percebeu apenas uma gentileza.
Não uma luz ofuscante, não um som estrondoso;
uma gentileza tão cheia que preenchia o canto do quarto.
Depois a imagem ficou clara: um frade franciscano, com a túnica marrom e a corda na cintura, sandálias simples e um rosto sereno.
Ele não era luminoso porque estava vestido de branco;
era luminoso porque era bom.
Sua bondade se via, como se vê o calor tremulando numa estrada de verão.
Pasqualino levantou-se de um salto, mas não bufou. Deu dois passos à frente, curioso.
O frade lhe lançou um olhar terno, e o gato, algo raríssimo, baixou a cabeça, como em sinal de respeito.
Carlina sentiu uma vontade de chorar. Não de tristeza, mas de alívio.
— Olha… — disse ao garoto. — Alguém veio.
O frade ergueu a mão, um gesto pequeno, natural.
Sua voz não sacudiu o ar, mas chegou clara ao centro de todos:
— Paz e bem, disse, como os irmãos costumam dizer.
Depois olhou para o garoto com olhos que pareciam conhecer sua história.
— Não temas, filho. Quando a estrada muda, Deus sempre envia um companheiro. Queres vir comigo?
O garoto hesitou. Olhou para Carlina com uma gratidão tímida.
--E se eu não estiver pronto?
— Ninguém corre, — disse o frade. — A gente caminha. E caminha junto.
Mattia, que não via nada daquilo, levantou a cabeça e sentiu que algo estava diferente.
O quarto lhe pareceu alguns metros mais amplo, como se as paredes tivessem se aberto para acolher um abraço.
Sem esforço, seus lábios murmuraram:
— Seja feita a Tua vontade.
Carlina assentiu para o garoto.
— Eu vou ficar aqui, — disse. — Mas não é você que está indo embora: é a vida que está continuando. Vai com ele.
Pasqualino emitiu um miado curto, quase um incentivo. Fez menção de avançar mais, mas parou, manso pela primeira vez em horas.
O garoto olhou para a mão do frade. Não era uma mão estranha; era como a mão de um avô, como a de um pai ensinando a andar de bicicleta, como a mão que te levanta quando você rala o joelho.
Ele a segurou.
Não houve nenhum clarão, nenhuma cena de filme.
Apenas um sentimento profundo de casa.
O frade e o garoto se moveram na direção de algo que não era uma porta, e mesmo assim era um caminho.
O canto do quarto voltou a ser canto.
O vento da janela voltou a ser vento.
E o tempo voltou a contar segundos do jeito que conhecemos.
Carlina ficou imóvel, as mãos apertadas na borda da mesa. Sentia o coração bater devagar, num ritmo tranquilo.
Fechou O Livro dos Espíritos com cuidado, como quem se despede de um amigo que aconselhou.
Mattia a observou, procurando em seus olhos a confirmação daquilo que ele não tinha visto.
— Ele foi embora? — perguntou.
Carlina sorriu — um sorriso cansado, mas cheio.
— Sim. Foi com um frade. Daqueles… franciscanos. Se chama assim, né? Túnica marrom, corda na cintura.
— Franciscanos, — confirmou Mattia, permitindo-se um sorriso. — Gosto de pensar que o céu é um pouco como um convento: simples, acolhedor, com pão quente e mãos prontas para ajudar.
Pasqualino se espreguiçou e, com o timing único que só ele tinha, decidiu que o melhor momento para morder era justamente aquele: agarrou o cordão do moletom de Mattia e mordeu com gosto.
Mattia riu, tentando se soltar.
— Ei, amigo, isso não é um terço.
— É o jeito dele de dizer que está tudo bem, — comentou Carlina.
Ela o pegou no colo, e o gato, pela primeira vez em horas, não protestou.
Ficaram ali por um tempo, em silêncio.
No corredor, ouviu-se o barulho de uma panela: a mãe de Carlina preparando o jantar.
A luz quente do final da tarde se tornava dourada.
— Sabe o que eu penso? — disse Mattia, apoiando a mão no livro fechado. — Penso que Deus tem um jeito infinito de nos consolar. Para você Ele mostra; para mim, Ele faz acreditar. Ele ajuda cada um na língua que entende.
Carlina concordou.
— Às vezes eu achava que minha sensibilidade era só confusão. Ou que ver espíritos fosse um peso. Mas hoje… hoje tudo pareceu certo.
— Não é um jogo, — disse Mattia com delicadeza. — É uma responsabilidade. Mas você não está sozinha. E nunca vai enfrentar nada maior do que o amor que Deus coloca à disposição.
Carlina olhou para fora, para as ondas distantes do mar.
— É como a história das estrelas que você contou, — refletiu. — Uma estrela pode já não existir mais, mas sua luz continua viajando. Hoje eu vi uma luz que vinha de muito longe.
— E estava vestida de marrom, — brincou ele, erguendo as sobrancelhas.
Riram juntos, e a risada desfez o último nó que restava no ar.
Voltaram aos cadernos. Mattia explicou frações com um desenhinho simples: uma pizza dividida em pedaços iguais.
Carlina acompanhou, mais atenta do que antes, como se cada parte fizesse parte de um todo que finalmente se revelava.
Pasqualino adormeceu entre os dois, como uma almofada viva, e de vez em quando uma patinha se mexia no sono, perseguindo sonhos felinos.
Quando a mãe chamou para o jantar, fecharam tudo.
Antes de sair, Carlina pensou no garoto outra vez.
Não sentiu tristeza.
Sentiu gratidão.
Na porta, Mattia parou.
— A gente pode ler mais desse livro, se você quiser, — disse, indicando o volume. — Talvez tenha outras respostas para outras perguntas.
— Sim. E depois podemos… — ela hesitou, escolhendo as palavras — …podemos rezar juntos. Mesmo que seja pouco. Não aquelas orações que parecem enxames de palavras, mas aquelas que são como um abraço.
— Combinado, — disse Mattia. — A oração é como uma ligação sem crédito: não custa nada, mas sempre chega.
Caíram na risada.
Pasqualino acordou assustado, olhou com ar sabido e se afastou de cauda erguida, como se fosse ele o autor da piada.
À mesa, a sopa cheirava a manjericão.
A mãe de Carlina perguntou como tinha sido o estudo; Mattia respondeu que tinham entendido melhor as frações e talvez… mais alguma coisa.
O pai contou uma história do trabalho, e a irmãzinha, que tinha acabado de voltar da aula de dança, tentou uma pirueta entre a mesa e a geladeira.
Pasqualino, fiel ao seu estilo, encontrou um jeito de morder o laço da pantufa do pai, ganhando um divertido “Ei!”.
Mais tarde, quando Mattia se despediu e desceu as escadas, o céu era um veludo.
Carlina ficou um instante no patamar, olhando as estrelas.
Não buscava nada em especial: deixava que a noite falasse com sua língua antiga.
— Obrigada, — disse baixinho, e não era claro se falava com Deus, com o frade, com o garoto, com as estrelas, ou com todos eles.
Entrou.
Antes de dormir, colocou O Livro dos Espíritos de volta na estante, mas não completamente: deixou-o um pouco para fora, como uma mão pronta para ser segurada no dia seguinte.
Depois pegou um caderno novo.
Na primeira página escreveu:
Os Mistérios da Vida – Anotações.
Embaixo, acrescentou:
Hoje aprendi que a morte não é um fim. É uma ponte. E que Deus sempre coloca alguém do outro lado para segurar nossa mão.
Apagou a luz.
No escuro tranquilo do quarto, Pasqualino pulou na cama e se acomodou em arco junto ao seu corpo. Sua respiração virou um pequeno mar regular.
Carlina fechou os olhos e viu, por um último instante, a túnica marrom se afastando com passo leve, e o garoto que já não estava sozinho.
Então percebeu que aquilo não era apenas uma história para contar um dia: era o primeiro passo de um caminho.
Entre o céu e a terra.
Entre perguntas e respostas.
Entre o que se vê e o que se crê.
Na manhã seguinte, na escola, enquanto a professora de religião falava sobre o perdão, Carlina e Mattia trocaram um olhar secreto.
Não disseram nada.
Mas, por dentro, num lugar que as palavras não alcançam, sentiram a mesma promessa:
Caminhar, juntos, entre os mistérios da vida.