20/11/2025
Um número crescente de pessoas procura outras geografias, outros ritmos, outras maneiras de estar. Não é fuga, nem nostalgia: é a necessidade de reencontrar proporção, recuperar tempo, restabelecer a relação sensível entre o humano e o não-humano. É a tentativa de recuperar uma respiração inteira, de recentrar a vida em torno de uma atenção mais ampla, que inclua a paisagem, os ciclos da matéria, as relações que sustentam a existência.
Entre o Urbano e o rural.
Há movimentos que começam quase impercetíveis. Não se impõem; insinuam-se. E, quando finalmente os reconhecemos, já se tornaram evidentes, como se a mudança tivesse amadurecido ao mesmo tempo no que vemos e no que imaginamos. Talvez porque nasce nesse espaço onde o real e o sonhado se reforçam mutuamente, como se a própria Terra nos chamasse sem necessidade de levantar a voz. Há uma espécie de murmúrio antigo que regressa, uma vibração contínua que pede atenção e que, por muito subtil que pareça, transformará a forma como habitamos o mundo.
Durante décadas, acreditámos que o futuro se construía sobretudo nas cidades. Elas continuam a ser centros de energia criativa, encontro e promessa, lugares onde a diversidade se cruza em cada esquina e onde as possibilidades parecem inesgotáveis. Mas, sob essa pulsação constante, ergue-se outro som, mais discreto, mas cada vez mais presente. É como se o planeta, cansado de falar baixo, estivesse a encontrar novas formas de se fazer ouvir. O que antes parecia ruído de fundo torna-se agora sinal, um convite a reconsiderar as geografias onde projetamos o futuro.
O que observo - e também pressinto - é uma deslocação lenta e profunda. Um número crescente de pessoas procura outras geografias, outros ritmos, outras maneiras de estar. Não é fuga, nem nostalgia: é a necessidade de reencontrar proporção, recuperar tempo, restabelecer a relação sensível entre o humano e o não-humano. É a tentativa de recuperar uma respiração inteira, de recentrar a vida em torno de uma atenção mais ampla, que inclua a paisagem, os ciclos da matéria, as relações que sustentam a existência.
Este movimento tem uma dimensão factual, mas também utópica. Alimenta-se das práticas que emergem e das imagens que projetamos: lugares onde o quotidiano convive com o cósmico, onde a vida reencontra ritmos capazes de sustentar o pensamento. A surpresa está em vê-lo acontecer diante dos nossos olhos: oficinas digitais em aldeias antes silenciosas, agricultura regenerativa que devolve vida a solos esgotados, cafés remotos onde se discutem ideias globais e se antecipa o futuro, comunidades que reinventam a vizinhança e o cuidado.
Os territórios fora dos grandes centros tornam-se espaços de convivência íntima com a Terra, onde o silêncio volta a ser fértil e a atenção se converte em conhecimento. Mas este movimento não exclui as cidades. Pelo contrário: convida-as a entrar num processo dialogante, capaz de gerar metrópoles mais porosas, mais verdes e mais alinhadas com os ciclos que as sustentam. A reconexão que floresce nestes territórios mais calmos pode inspirar novas formas de urbanidade, mais contidas, mais circulares, mais conscientes.
Talvez o essencial não seja voltar ao campo nem abandonar a cidade. Talvez o verdadeiro movimento seja interior e atravesse todas as geografias. Um movimento sustentado pelo reconhecimento de que o planeta não é cenário, mas presença viva. A Terra fala através da água, do vento e das ausências, através das marcas que deixa e dos equilíbrios que exige. E, ao escutá-la, reinventamos tanto as paisagens rurais como as urbanas, tanto o que herdámos como o que ainda desejamos construir.
Não sei que forma final tomará esta transição. Sei apenas que a fronteira entre o que vejo e o que imagino se tornou mais porosa e mais fértil. Talvez seja nessa porosidade que nascerá uma nova forma de habitar o mundo: uma forma em que atenção, reverência e criação caminham juntas. Uma forma em que a Terra chama, e nós finalmente respondemos.
Helena Freitas
Full Prof Biodiversity & Ecology Univ Coimbra. Coordinator CFE/Centre for Functional Ecology. Unesco Chair in Biodiversity. IPBES Portugal. ICC-MaB Unesco. President Advisory Board BCSD Portugal.