11/05/2015
Colocando os pontos nos iii em relação aos problemas ligados ao álcool
(Alcoolismo, dependência alcoólica, etc.)
O autor declara que bebe moderadamente em ocasiões especiais e acha que o álcool pode ser uma fonte de prazer quando bebido com muita sobriedade
Neste último mês e a propósito da nova lei do álcool, têm proliferado artigos e opiniões acerca dos problemas ligados ao álcool (PLA) e a forma de diminuir o consumo excessivo do mesmo no país e em especial na ilha da Madeira.
No século XIX a Madeira era considerada a ilha da aguardente e os médicos militares que aqui se deslocavam para inspeccionar os mancebos referiam-se aos mesmos como debilitados física e psiquicamente.
Feliz ou infelizmente a Madeira é uma região onde se produz um dos melhores vinhos do Mundo. Já Cadamosto, navegador veneziano o dizia. Foi também uma grande produtora de açúcar. Actualmente ainda produz quantidades apreciáveis de aguardente de cana e de bagaço de uva, quer de forma legal e que pode ser contabilizada, quer duma forma doméstica, esta não contabilizada, mas que no dizer dum abalizado engenheiro agrónomo da Região e muito conhecedor da realidade rural ligado a estes problemas, ascende a mais de 50 destilarias particulares.
Quando cheguei a esta Região em 1969 tomei conhecimento de perto do flagelo dos problemas ligados ao álcool e desde logo propus-me a estudá-lo de forma sistemática.
Nessa época, as pessoas dependentes do álcool não eram reconhecidas como doentes, mas sim como viciados e a doença alcoólica não era reconhecida como tal, mas sim considerada um vício, como ainda no dia 19 de Abril de 2015, na página 8 do DN se refere que “quase 300 pessoas em 2012 deixaram o vício e 5 morreram devido ao abuso de álcool”.
Felizmente, duma forma geral, hoje já se considera que a dependência alcoólica é uma doença que tem tratamento e que a prevenção dos problemas ligados ao álcool, sendo a doença alcoólica um deles, pode efectivamente ser concretizada, como demonstram a diminuição dos consumos de álcool em vários países da Europa e do Mundo, que para tal aplicaram programas devidamente estruturados e com a eficácia demonstrada por vários autores.
Todas as classificações internacionais de doenças consideram a dependência do álcool como tal.
O primeiro estudo que fiz na Região acerca do consumo de álcool por ano e per capita juntamente com a drª Josefa Neves, então directora regional de estatística, revelava-nos que os madeirenses ingeriam cerca de 11 litros de álcool puro por ano e per capita.
Na RAM consome-se cerca de 10 a 11 litros de álcool por ano e per capita (Saturnino, 1994).
Consome-se cerca de 5 vezes a dose óptima estabelecida para uma população beber (Skog, 1992).
Os custos sociais deste nível de consumo são aproximadamente cerca de 6% DO PRB
A percentagem de internamentos devidos aos PLA em Hospitais Psiquiátricos na RAM em 1990, a nível do s**o masculino, atingiu os 50%.
Problemas como a violência familiar, acidentes rodoviários, acidentes de trabalho, absentismo, demissões, desemprego, dívidas, aumento da criminalidade, diminuição das performances no trabalho e da esperança de vida, estão relacionados directamente com o consumo de álcool.
Existia cerca de 1 estabelecimento de venda de bebidas alcoólicas por cerca de 100 ..120 habitantes em 1999.
A OMS tolera 1 para 3000 habitantes!
Ao longo de 30 anos observei e participei em muitas campanhas de combate à dependência alcoólica deslocando-me a várias escolas, estabelecimentos militares e policiais para falar sobre as consequências nefastas do álcool, ajudei a fundar o Centro de Recuperação de Alcoólicos, a Sociedade Anti-alcoólica da Madeira, etc., etc., cujo resultado foi praticamente zero em termos de consumo de álcool por ano e per capita. Tratamos os doentes, tornam-se abstinentes, mas o número dos mesmos continua idêntico e o consumo de álcool na RAM não baixa significativamente. Reformado há mais de dez anos da função pública, continuo a tratar doentes no meu consultório e não noto qualquer diminuição dos PLA. Os doentes melhoram, tornam-se abstinentes mas são logo substituídos por outros mais novos que ocupam o seu lugar. Isto está demonstrado, segundo li, nas últimas estatísticas de doentes alcoólicos internados no Centro de Recuperação de Alcoólicos Frei Ricardo Pampuri (CRAFRP), na Casa de Saúde S. João de Deus, Trapiche, que ronda anualmente cerca de 1 admissão diária.
Tecnicamente está demonstrado que, após o indivíduo iniciar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, os primeiros sintomas visíveis da doença alcoólica aparecem cerca de dez anos depois, (time-lag) razão pela qual os doentes que se tornam abstinentes são logo substituídos por outros que continuavam a beber sem sintomas e que posteriormente começam a manifestarem-se, procurando ajuda.
A indústria de bebidas alcoólicas é uma actividade economicamente muito poderosa e capaz de influenciar de forma directa ou indirecta os políticos. Recordo-me a propósito, que uma vez a falar com um político muito influente nesta Região, abordei o problema do álcool e citei uma série de inconvenientes e consequências que a Madeira tinha pelo seu consumo exagerado. Esse político afirmou-me que não tinha conhecimento desse problema na ilha. Disse-lhe então que no dia seguinte lhe enviaria uma cópia dum artigo que ia publicar, onde se demonstrava o exagerado consumo de bebidas alcoólicas na RAM. Assim o fiz e o referido político dois ou três dias depois enviou-me um cartão muito gentil elogiando o trabalho e no fim, em quase nota de rodapé, afirmava que tinha decidido dar-lhe a classificação de confidencial. Escusado será dizer que, no dia seguinte, mandei os dados que tinha no artigo para a comunicação social e publiquei posteriormente o mesmo em revista da especialidade.
Na época em que me dediquei a estas peregrinações anti-alcoólicas pela Região, ainda desconhecia, porque também alguns não existiam, os trabalhos publicados sobre experiências feitas em vários locais que fizeram efectivamente baixar o consumo de álcool por ano e per capita nos respectivos países.
É com certo desgosto que vejo proliferar gente bem-intencionada a ter iniciativas individuais para combater os PLA, que para além de consumirem recursos, estão invariavelmente condenadas ao insucesso em termos de diminuição dos mesmos.
Como com o passar dos anos tornei- me conhecido, passaram a chamar-me para tudo o que era sítio para dar conferências ou entrevistas aos meios de comunicação social, ao que sempre acedi e acabei por marcar uma posição que mais adiante definirei.
Em determinado momento, a directora regional da saúde pediu-me que constituísse uma equipa para apresentar-lhe um relatório com medidas específicas para diminuir o consumo de álcool na Madeira. Na altura disse-lhe que era uma perda de tempo visto que ela não teria capacidade de aplicar as medidas que são preconizadas pela OMS e pelos maiores peritos mundiais em PLA. Retorquiu-me que estava empenhada nesse assunto e que poderia ter a certeza que aquilo que nós tecnicamente disséssemos ela iria aplicar.
A equipa foi constituída por mim, que presidi, e por representantes das várias secretarias regionais, da polícia, do ministério público e das associações anti-alcoólicas. Depois de elaborado, o relatório foi apresentado e elogiado. Foi prometido que iria ser aplicado, só que, como eu previ, ficou na gaveta, presumo eu que em consequência do interesse no lugar que ocupava ser maior do que o combate a este flagelo que assola a Região.
Passados mais de 40 anos de actividade nesta Região, o que é que constato?
O consumo de álcool mantém-se, com pequenas oscilações, idêntico ao de quando eu cá cheguei.
O número de pessoas a procurar ajuda para os seus PLA mantém-se sensivelmente o mesmo neste lapso de tempo.
O acesso ao álcool está cada vez mais facilitado e os pontos de venda são mais que muitos. A Madeira tem cerca de 30 vezes mais locais de venda de álcool do que a OMS preconiza.
A moda da poncha e outras bebidas do género está instalada em associação com o incentivo ao cultivo da cana de açúcar e subsequente produção de aguardente.
Desde o séc. XIX praticamente não houve vontade política de atacar o problema sob vários pretextos como: o turismo, a agricultura, a economia etc. etc.
Em suma, tudo aquilo que se fez no capítulo da prevenção primária, isto é, medidas para diminuir o consumo de álcool per capita na população foram ineficazes. O mesmo não se pode dizer da prevenção secundária (tratamento dos doentes) que tem sido bem sucedida, quer nas consultas de Psiquiatria, privadas ou públicas, assim como no CRAFRP, na Casa de Saúde S. João de Deus.
Na prevenção terciária (reabilitação dos danos causados pelo álcool), as associações anti-alcoólicas têm tido um papel de relevo.
Para que uma política no sentido de baixar o consumo numa região ou país tenha êxito, são necessárias várias medidas que deverão ser aplicadas em conjunto e simultaneamente. Daí que esta última medida da proibição de venda a menores de cerveja e vinho e não o consumo, seja perfeitamente anedótica e quem a promulgou deve querer que o zé povinho pense que os políticos estão interessados em resolver os PLA.
Passarei a enumerar as medidas, embora muito resumidamente, que se forem aplicadas em simultâneo resultarão na diminuição significativa do consumo de álcool por ano e per capita, como ficou demonstrado em vários países onde foram aplicadas e onde existia vontade política para o fazer. Se assim não for feito, como tenho dito repetidamente a vários dirigentes da saúde, sentar-me-ei e esperarei para três ou quatro anos para depois verificar que o consumo mantém-se idêntico. Pena é que os directores regionais e secretários por vezes já não estejam no cargo político.
Não agir de forma preconizada é brincar com a saúde do povo.
Compete aos políticos a aplicação das medidas que se seguem:
MEDIDAS EFICAZES DE COMBATE AOS PLA, SE APLICADAS EM CONJUNTO
FACTORES A TER EM CONTA NA PREVENÇÃO PRIMÁRIA
Produção
Quanto maior a produção, maior o consumo.
Preço
O álcool tem elasticidade de preço.
O preço do álcool sobe, o consumo desce.
O preço do álcool desce, o consumo sobe.
Medidas tendentes a diminuir o acesso ao álcool
Densidade dos pontos de venda
O aumento de 10% dos postos de venda faz aumentar o consumo de álcool per capita na população, de 1% (Wilkinson 1987), (Watts e Rabow 1983).
A Região Autónoma da Madeira tem cerca de trinta vezes mais pontos de venda do que deveria ter (1 para 103 contra 1 para 3000 tolerados pela OMS) no meu último trabalho.
Cumprir a lei no que respeita às destilarias clandestinas.
Bebidas de baixo teor alcoólico
A disponibilidade de bebidas alcoólicas de baixo teor só faz baixar o consumo de álcool, desde que essas sejam mais baratas que as outras.
Horários
Quanto maior for o período de abertura, maior o consumo e maior os PLA (Smith 1987/1988).
Idade legal para ingestão de bebidas alcoólicas
Quando sobe a idade, diminui os acidentes de tráfego. Quando desce a idade, aumentam os acidentes de tráfego (USA General Accounting Office 1984/1987).
Formação dos servidores de bebidas alcoólicas
A formação consciente, nos USA e na Austrália, dos indivíduos que vendem bebidas alcoólicas, fez baixar os acidentes de tráfego nessas zonas em 50% (Russ e Geller 1993).
Responsabilização e criminalização dos vendedores de bebidas alcoólicas a embriagados
A responsabilização destes agentes em determinadas zonas dos USA, fez baixar o número de acidentes de tráfego de 6,5% para 5,3%.
Segurança Pública e ingestão de álcool em certos contextos
Quanto mais probabilidades tiver o condutor de ser apanhado e mais rapidamente for aplicada a sanção, mais eficácia terão as medidas (Gibbes 1975 e Beyleveld 1979).
Quanto mais severa for a sanção, (inibição de conduzir) maior a dissuasão (Ross 1982 e Andenais 1983).
As operações Stop para controlo de alcoolémia deverão ser aparatosas para que todos se apercebam do que se está a passar.
Os resultados destas medidas aplicadas na Austrália onde cada polícia dedicava uma hora do seu serviço diário ao controlo aleatório da alcoolémia dos condutores e a probabilidade de cada condutor ser fiscalizado era de 50% ao ano, resultou que durante um ano os acidentes mortais baixaram 22% e a totalidade dos acidentes baixaram 36% (Arthurson 1985 e Homol 1988). Ross e Salutin em 1980, Voas em 1982, Wilsom em 1983, Williams e Lund em 1984, obtiveram resultados idênticos na Inglaterra. Quantos alcoómetros tem a PSP na Região?...
EDUCAÇÃO E PREVENÇÃO:
MEDIDAS SOBRE ESTILOS DE CONSUMO E REGRAS CULTURAIS ACERCA DO ÁLCOOL
Informar e formar as populações para estilos de vida saudáveis promotores da saúde em geral e da saúde mental em particular.
Sensibilizar as populações para a mudança de comportamentos relativos ao consumo de bebidas alcoólicas, optando pela não ingestão destas.
Reduzir, através da melhoria de conhecimentos e de acções favoráveis às melhores opções para a saúde, a incidência de problemas ligados ao álcool.
Isto porque, quando a informação e a educação são bem desenvolvidas (MELLO, 1988), todas as restantes medidas propostas neste documento encontrarão um público já sensibilizado para o assunto, sendo por isso, naturalmente mais eficazes na redução dos PLA.
Temos novos governantes, faço votos que olhem para este problema que consome imensos recursos económicos e que deverá ser o principal problema de saúde publica da RAM
Saturnino Figueira da Silva
Médico psiquiatra