02/11/2025
Geoculturas
Do deserto à Europa: Difusão do monaquismo cristão e desenvolvimento sócio-cultural | Rogério Barreto
Os mosteiros desempenharam na Europa um papel decisivo no desenvolvimento histórico, cultural, social, económico e agrícola dos territórios, constituindo-se como centros de saber, de preservação do conhecimento e de inovação. Ao longo da história, o monaquismo cristão afirmou-se como um dos motores do progresso humano, processo complementado com a fundação das primeiras universidades a partir do séc. XI, acompanhando o movimento cultural inerente à criação das duas mais antigas universidades do mundo, ambas muçulmanas – Universidade Al- Quarawiyyia, na cidade de Fez, Marrocos, e Universidade de Al-Azhar, no Cairo, Egipto, fundadas respectivamente nos séc. IX e X.
A implantação dos mosteiros foi uma mais valia para a regiões onde floresceram, ao construir consideráveis áreas agrárias, desenvolvendo técnicas agrícolas e criando riqueza, especialmente através do cultivo da vinha e do comércio de produtos manufacturados, além de se tornarem focos intelectuais e educativos, a par da dimensão espiritual que lhe está subjacente.
A implantação de mosteiros é um processo que tem início numa época remota da história europeia, numa fase de transição entre os períodos clássico e alto-medieval. O monaquismo cristão é uma realidade estabelecida no séc. IV, originalmente na região do Médio Oriente, onde se concretizam experiências de aproximação às raízes de uma religião que se vai difundindo paulatinamente nos territórios do arco romano. A construção de mosteiros é uma forma nova de congregar seguidores e divulgadores dos preceitos dessa religião fundada na vida de um homem singular que viveu naquela região.
Entre um afastamento da vida mundana e o isolamento em terras inóspitas, experienciados por eremitas, anacoretas e solitários nos desertos da região de Alexandria, no Egipto – Sinai e Nítria, os míticos “padres do deserto”, que se tornaram mais tarde lugares centrais do monaquismo, S. Macário, o Grande, iniciou sua vida ascética nesta região e fundou uma das primeiras comunidades monásticas da cristandade. A partir desta comunidade monástica original são fundados os quatro primeiros mosteiros do cristianismo – Mosteiro de Baramous, Mosteiro de São Macário de Scété, Mosteiro de S. João Menor e Mosteiro de São Bishoy.
Bento de Núrsia foi um monge e abade que viveu entre os séculos V e VI d.C., natural da cidade de Núrsia, no Centro de Itália, considerado o impulsionador da vida monástica na Europa. Tendo fundado o Mosteiro de Monte Cassino, escreveu uma regra para os mosteiros que se tornou fundamental para o monaquismo ocidental. Durante séculos a Regra de S. Bento foi-se difundindo à medida que foram sendo construídos novos mosteiros pela Europa fora, e no séc. VIII estava já presente em Inglaterra, Alemanha, França e Espanha. Em Portugal, a observância da vida monástica tem início com S. Martinho de Dume, o apóstolo dos Suevos, oriundo da Panónia, actual Hungria, bispo que foi de Braga e Dume, e onde faleceu no ano de 579. Contudo, a Regra de S. Bento foi conhecida no território que veio dar origem ao reino de Portugal pelo menos no século X. Oficialmente só em 1567, na sequência do Concílio de Trento (1545-1563), que impôs a união das ordens religiosas em congregações, é fundada a Congregação dos Monges Negros de S. Bento dos Reinos de Portugal, tendo como casa-mãe o Mosteiro de Mire de Tibães, no concelho de Braga, remotamente fundado por uma família terratenente da aristocracia local.
A região de Entre Douro e Minho viu nascer inúmeros mosteiros, alguns instituídos por comendatários, membros da aristocracia regional, e outros por monges de obediências monásticas diversas, onde sobressaía a cluniacense. Estas estruturas religiosas introduzem na paisagem rural significativas alterações, sobretudo as veiculadas pelas novas práticas agrárias, o arroteamento das terras virgens, a reconfiguração de propriedades rústicas que lhe são afectas, parte das quais as cercas delimitavam rigorosamente, a construção de moinhos e outras unidades produtivas. De igual modo, o mosteiro é um foco cultural quando nele se funda a biblioteca, apesar de nem todos a possuírem, ou a scriptoria dos grandes mosteiros, onde os livros eram copiados manuscritamente. Destes lugares irradiava conhecimento e cultura, atributos de que beneficiavam as comunidades locais.
A sua função é funamentalmente cultual, de observância religiosa, mas não menos importantes são os vectores impulsionadores de desenvolvimento aportados a uma localidade ou região - mudança, inovação, organização, economia agrária, comércio local, difusão cultural.
No Entre Lima e Cávado, no Vale do rio Neiva, que atravessa os concelhos de Vila Verde, Ponte de Lima, Barcelos, Esposende e Barcelos, pontificam três antigos mosteiros beneditinos – Santa Maria de Carvoeiro, Santo André de Palme e S. Romão do Neiva, distando cerca de 7 km entre si, com origens nos primórdios da nacionalidade. Em meados de 1500 viveu nas suas margens verdejantes, em Duas Igrejas, o poeta Sá de Miranda, dito Poeta do Neiva, vate consagrado da literatura portuguesa que nele encontrou repouso e inspiração.
A história religiosa e social regista a importância das dinâmicas beneditinas na construção de uma identidade própria que as comunidades locais reconhecem e valorizam, cujos legados e valores patrimoniais merecem políticas de salvaguarda arquitectónica e de dinamização cultural.