28/11/2025
Parte I - O Pai Interno e o Burnout
A travessia entre Burnin e Burnout — fogo-fátuo da modernidade
A palavra burnout deriva do inglês: queimar por fora até ao fim, consumir-se em cinzas. Já burnin, termo mais recente, designa o movimento inverso e anterior: queimar por dentro, enquanto a chama permanece viva e intensa — consumindo-se de forma silenciosa. Ambos descrevem modos de existir em grande combustão: ora na exuberância da entrega total, ora no colapso da exaustão que já não permite reagir.
Ora, a nossa hipótese é que o burnout não nasce simplesmente do mundo externo; nasce do encontro doloroso entre esse mundo e as nossas feridas internas. O contexto desperta o que já era frágil. A pressão laboral, o excesso de tarefas, a cultura de resultados podem funcionar como gatilhos eficazes, mas só desencadeiam o colapso quando o sujeito já traz consigo um modo de amar e de ser amado que pode estar baseado no sacrifício e na dependência afetiva do outro.
O burnin inaugura este percurso: pode ser uma pessoa que está numa depressão manifesta ou num estado de negação da depressão em que nem ela tem consiciencia que está deprimida , a que chamamos depressividade.
O burnout é o resultado para nós do burnin no mundo laboral, nas relações externas. Ora, a forma como nos relacionamos com o trabalho — e com a exigência — pode ser uma réplica dos nossos vínculos primários da infância. Na psicanálise, a função paterna representa a lei simbólica, a autorização para existir socialmente, o reconhecimento do valor pessoal. Pais autoritários levam a criança a acreditar que apenas a excelência garante amor e pertença; pais ausentes ou indiferentes ensinam, pelo silêncio, que é preciso fazer muito para ser visto; pais democráticos, que aliam exigência afetiva a limites coerentes, oferecem a possibilidade de o sujeito se sentir digno mesmo na falha. Quem acendeu a nossa chama pode assim determinar, muitas vezes, como ela arde em nós e por quanto tempo.
A projeção da experiência de ter um pai autoritário nas relações laborais afeta profundamente o indivíduo, criando padrões de comportamento e vulnerabilidades que aumentam significativamente o risco de burnout. Esta projeção manifesta-se principalmente através da internalização do modelo de autoridade, moldando a forma como o indivíduo lida com chefias, pressão, e autonomia no ambiente de trabalho: a Submissão e Medo de Crítica, o indivíduo aprendeu que desobedecer ou falhar resulta em punição severa ou perda de afeto (no contexto parental), no trabalho, isto traduz-se em submissão excessiva à chefia, mesmo que esta seja tóxica. O trabalhador evita o conflito a todo o custo e tem um medo intenso de cometer erros ou de receber feedback negativo, existe uma incapacidade de dizer "não" à sobrecarga de trabalho, o medo de desagradar impede o estabelecimento de limites saudáveis, resultando em exaustão emocional e stress crónico; o Perfeccionismo e Autoexigência Excessiva, a única maneira de um filho de um pai autoritário ganhar validação ou evitar críticas é atingir um padrão de excelência inatingível, no trabalho, esta dinâmica manifesta-se como perfeccionismo patológico e uma autocobrança incessante (o chamado "trabalhador workaholic"), o perfeccionismo é um fator de risco primário para o burnout, a necessidade de dar "200%" em todas as tarefas, o receio de delegar e a incapacidade de aceitar o "suficientemente bom" levam à sobrecarga contínua e à exaustão física e mental ; Dificuldade na Autoestima e Realização : a ausência de reconhecimento ou a crítica constante na infância geram uma baixa autoestima e uma sensação de incompetência subjacente, o trabalhador pode procurar validação através de resultados, mas nunca se sente realmente realizado ou bom o suficiente, independentemente do sucesso. O indivíduo não consegue sentir realização profissional, um dos pilares do burnout. O sentimento de insatisfação crónica mantém-no num ciclo vicioso de trabalhar mais para provar o seu valor, sem nunca o alcançar, o que aprofunda a exaustão.
Já a projeção de um pai democrático na relação do trabalhador com a liderança e com os colegas e o risco de burnout estão inversamente relacionados: o estilo parental democrático atua como um fator protetor contra o burnout laboral, promovendo o desenvolvimento de recursos psicológicos essenciais. O estilo parental democrático é caracterizado por: Alta exigência (estabelece regras e limites claros); Alta responsividade (oferece elevado afeto, apoio emocional e diálogo); valoriza a autonomia, a comunicação aberta, a criatividade e a participação nas decisões.A pessoa que foi criada num ambiente democrático internaliza a confiança e a competência para navegar no mundo profissional de forma mais saudável. Na infância: A criança era incentivada a tomar decisões apropriadas à sua idade, a argumentar as suas ideias e a participar na criação de regras. No trabalho: O adulto tem elevada autoeficácia (confiança nas suas capacidades), capacidade de autorregulação e de iniciativa. Ele procura ativamente soluções e sente-se confortável em assumir responsabilidades. Estes recursos (autonomia e autoeficácia) são a antítese do burnout. O trabalhador sente controlo sobre as suas tarefas e ambiente, o que reduz significativamente o stress laboral. O adulto tem capacidade de negociação e assertividade. Consegue estabelecer limites saudáveis e comunicar as suas necessidades. A capacidade de impor limites previne a sobrecarga, a principal causa da exaustão emocional. A comunicação aberta permite a busca de apoio ou a discussão de expectativas irrealistas com a chefia. O indivíduo criado num ambiente democrático tende a prosperar sob estilos de liderança que se assemelham ao modelo parental, como a liderança transformacional ou a liderança participativa.
Quando a função parental falha, não contendo a angústia da criança, instala-se aquilo que Bion designou terror sem nome: um medo primitivo, incessante, sem palavras que o possam representar. No burnin, o sujeito mantém-se sempre ocupado, sempre disponível, sempre a responder expectativas — como se a imobilidade pudesse libertar o terror que vive dentro de si. Quando o burnout chega, esse terror regressa sem filtro, esmagador: o colapso não é apenas físico, mas também simbólico e emocional.
Dr. Paulo Nuno Pereira
Dr. Bernardo Corrêa D'Almeida