01/12/2025
«Quando o Corpo Escreve e a Consciência Lê»
(por Celso Oliveira)
Se pensarmos com Damásio, as emoções são tinta: matéria viva, densa, que se espalha pelo corpo antes de sabermos o que nela está escrito. Os sentimentos são, então, a leitura dessa tinta – o momento em que o organismo toma consciência do rasto que a emoção deixou no corpo e o traduz em narrativa interior.
A emoção acontece primeiro, quase como um reflexo.
O coração acelera, o estômago contrai-se, o rosto aquece, os músculos enrijecem.
É o corpo a mergulhar o pincel na tinta biológica: hormonas, pulsação, postura, respiração.
Nada disto, por si, é ainda «signif**ado». É apenas o quadro fisiológico a ser preparado.
O sentimento surge quando a mente se volta para esse quadro e começa a decifrá-lo.
O que antes era apenas alteração corporal transforma-se em experiência subjectiva: «estou ansioso», «sinto medo», «estou comovido». O sentimento é a legenda que escrevemos por baixo da imagem do corpo. Não é só o que o organismo faz, é a maneira como o organismo se compreende a si mesmo enquanto faz.
Neste sentido, as emoções são a gramática profunda do corpo;
os sentimentos, a leitura consciente dessa gramática.
Sem emoção, a vida seria um texto não escrito – uma página vazia, asséptica, sem cor.
Sem sentimento, a vida seria um texto escrito a tinta invisível – o corpo reagiria, mas ninguém leria a história.
Damásio lembra-nos que o cérebro não é um narrador isolado, fechado numa torre de marfim. É antes um escriba atento, permanentemente a receber relatórios do corpo: variações de pressão arterial, de temperatura, de tensão muscular, de composição química do sangue. Em resposta, desenha mapas internos. É quando esses mapas são «vistos» pelo próprio cérebro que nascem os sentimentos. A tinta é a alteração corporal; o sentimento é o mapa lido, interpretado, tornado consciência.
Há aqui uma visão profundamente realista:
não somos apenas o que pensamos sobre a vida, somos a maneira como a vida se inscreve em nós.
Cada perda, cada alegria, cada ameaça, cada abraço escreve linhas microscópicas no corpo: cicatrizes hormonais, hábitos posturais, trajectos neuronais. A consciência é, em boa parte, a arte de ler estes registos, de lhes dar coerência e direcção.
Mas há também lugar para o lirismo.
Imaginemos o corpo como um grande atelier, cheio de frascos de tinta de cores distintas:
a tinta escura do medo, rápida, intensa;
a tinta incandescente da raiva, espessa, que se espalha depressa;
a tinta suave da ternura, que não invade, mas impregna;
a tinta subtil da melancolia, que demora a secar.
As emoções são os salpicos e pinceladas que acontecem quando o mundo nos toca:
uma palavra dura atirada de repente, um olhar de aprovação, um silêncio prolongado, uma perda inesperada.
O pincel bate na tela antes de termos tempo de dizer «não quero sentir isto». A emoção já lá está. A tinta já caiu.
Os sentimentos são o momento em que nos afastamos meio passo, olhamos o quadro e pensamos:
«O que é que este desenho quer dizer de mim, do outro, da vida?»
Podemos interpretar a mesma mancha de maneiras distintas:
uma aceleração cardíaca pode ser lida como ansiedade, excitação, antecipação, pânico ou entusiasmo.
O corpo oferece a tinta; a história que contamos com essa tinta depende da nossa biografia, da nossa aprendizagem, do nosso contexto, da nossa capacidade de regular e simbolizar.
Nisto reside uma implicação clínica delicada e esperançosa:
não controlamos totalmente a tinta, mas podemos aprender a ler de outro modo o que ela escreve.
A emoção é, em grande parte, automática;
o sentimento, embora ancorado no corpo, é também uma construção.
Trabalhar terapeuticamente é, muitas vezes, ajudar alguém a reler a sua própria paleta emocional:
o que antes era vivido apenas como «ameaça» poder ser reconhecido como «alerta»;
o que surgia apenas como «fracasso» poder tornar-se «limite humano partilhado»;
o que era só «vergonha» poder ser traduzido como «desejo profundo de pertença».
Assim, a consciência deixa de ser apenas um espelho passivo e torna-se um leitor activo: sublinha, acrescenta notas à margem, reorganiza capítulos. As emoções continuam a surgir, fiéis à sua raiz biológica, mas os sentimentos ganham espessura, nuance, contexto. Deixamos de ser apenas vítimas da tinta para nos tornarmos, pouco a pouco, co-autores da pintura.
No fundo, ler Damásio é aceitar uma visão da existência em que o espírito não flutua acima da carne, mas se faz dela.
Os sentimentos não são um luxo poético, são a própria forma como a vida se reconhece a si mesma enquanto luta para se manter, adaptar e persistir.
Talvez possamos resumi-lo assim:
as emoções são o gesto do corpo a escrever;
os sentimentos, a consciência a aprender a ler.
E, entre a tinta que cai e a leitura que fazemos, abre-se o espaço onde algo novo pode nascer –
a possibilidade de transformar a experiência bruta em sentido, em escolha, em futuro.