28/10/2025
"Você Não Serve Pra Nada"
Foi isso que um menino de 7 anos me disse no meu último dia como professora.
Sem raiva. Sem ironia. Apenas uma voz indiferente, como quem comenta sobre o tempo.
"Você não sabe fazer TikToks. Minha mãe diz que pessoas velhas como você já deveriam se aposentar."
Eu sorri. Aprendi a não levar pro coração.
Mas mesmo assim… algo dentro de mim quebrou um pouco mais.
Meu nome é Helena. Ensinei o 1º ano por 36 anos numa cidadezinha perto de Belo Horizonte.
Hoje, arrumei minha sala pela última vez.
O Tempo em Que Ensinar Era Sagrado
Quando comecei, no fim dos anos 80, ser professora era um chamado. As pessoas confiavam em nós. Até nos admiravam.
Não ganhávamos muito, mas havia respeito. E isso valia mais que qualquer salário.
Os pais levavam bolo de fubá nas reuniões. As crianças faziam cartões cheios de erros de português e corações tortos.
E quando alguém lia sua primeira frase em voz alta… era uma alegria que nenhum dinheiro pagava.
Mas alguma coisa mudou.
Devagar. Silenciosamente. Ano após ano.
Até que um dia olhei pra minha sala e não reconheci mais o trabalho que tanto amei.
A Exaustão Invisível
Hoje, professores brasileiros perdem 21% do tempo de aula apenas tentando manter a ordem na sala. A cada cinco horas de aula, uma hora inteira se vai tentando conseguir atenção dos alunos.
Quase metade de nós (44%) relata ser constantemente interrompida.
Não é só por causa de tablets e lousas digitais.
É o cansaço. A falta de respeito. A solidão.
Antes, eu passava as tardes recortando maçãs de papel pra enfeitar as paredes.
Agora, passo preenchendo relatórios em aplicativos de comportamento, caso algum pai resolva me processar.
Já gritaram comigo na frente de toda a turma. Não alunos — pais.
Um deles me disse: "A senhora não sabe lidar com criança. Vi um vídeo no celular do meu filho."
Ele tinha me filmado enquanto eu tentava acalmar outro aluno em crise.
Ninguém perguntou como eu estava. Ninguém quis saber que eu funcionava à base de café, chiclete e pura força de vontade.
As Crianças Também Mudaram
E a culpa não é delas.
Vivem num mundo acelerado, barulhento, desconectado. Chegam à escola sem dormir, viciadas em telas, emocionalmente despreparadas.
Alguns vêm com raiva. Outros com medo. Muitos não sabem segurar um lápis, esperar a vez ou dizer "por favor".
E esperam que a gente dê conta de tudo.
Seis horas por dia. Sem assistentes. Com 28 alunos. E um orçamento que não dá nem pra bolo de aniversário.
Lembro quando minha sala era um abrigo. Tínhamos cantinho da leitura com almofadas coloridas. Cantávamos toda manhã.
Aprendíamos a ser gentis antes de aprender a somar.
E agora? Agora me pedem "metas de aprendizagem", "métricas", "resultados mensuráveis".
Meu valor se mede pela forma como uma criança de 6 anos preenche bolinhas numa prova padronizada.
Uma vez, um supervisor me disse: "Você é muito afetiva. Nosso município quer resultados."
Como se conectar com crianças fosse um defeito.
Mas eu continuei. Porque sempre existiram momentos. Pequenos. Sagrados.
Uma criança que cochichou: "Você parece minha vó. Queria morar com você."
Outra que deixou um bilhete: "Aqui me sinto seguro."
Ou aquele menino tímido que finalmente me olhou nos olhos: "Li sozinho."
Agarrei esses momentos como boias salva-vidas. Porque eles me lembravam que, mesmo quando o mundo gritava o contrário, eu ainda estava fazendo algo que importava.
Mas este último ano… me quebrou.
A violência aumentou. Um aluno jogou uma cadeira pela sala. Outro me ameaçou: "Vou levar uma coisa de casa amanhã."
Tudo porque pedi pra ele sentar.
Mais de 79% dos professores brasileiros já pensaram em abandonar a carreira. Mais da metade relatou ter sido vítima de agressões verbais, intimidações, assédio moral e ameaças.
E 16% de nós dizem que a docência impacta negativamente nossa saúde mental — o dobro da média internacional.
Arrumei minha sala hoje. Arranquei desenhos desbotados das paredes — alguns de décadas atrás.
Encontrei uma caixa de cartinhas de 1995. Uma dizia: "Obrigado por gostar de mim mesmo quando fui bagunceiro."
Chorei ao ler.
Porque naquela época, ser professora significava alguma coisa. Hoje, parece uma profissão pela qual a gente precisa pedir desculpa.
Não houve festa. Nem discurso.
Só um aperto de mão do novo diretor, que me chamou de "senhora" e checou o celular no meio da despedida.
Esqueci minha caixa de adesivos. Minha cadeira de balanço. Minha paciência.
Mas levei comigo a lembrança de cada criança que um dia me olhou com encanto, com confiança ou com alívio.
Isso é meu. Ninguém pode me tirar.