25/10/2025
🌐 Síndromes de Disfunção Sistémica
O que são?
Chamamos síndromes de disfunção sistémica ao conjunto de condições em que há uma desregulação de vários sistemas do corpo — o nervoso, o autonómico, o imunitário e o endócrino — e em que surgem sintomas físicos reais e persistentes, muitas vezes sem uma lesão clara para explicar tudo.
Na literatura médica e científ**a, estas condições aparecem com designações semelhantes, como Functional Somatic Syndromes (FSS) ou Chronic Overlapping Pain Conditions (COPC) (Wessely, Nimnuan & Sharpe, 1999; Schrepf et al., 2024).
Este grupo de síndromes mostra que muitas doenças tradicionalmente tratadas de forma separada — como a fibromialgia, a síndrome do intestino irritável, a fadiga crónica ou a dor pélvica crónica — partilham mecanismos comuns e fazem parte de um mesmo espectro de disfunção sistémica e desregulação corporal.
✔️ A hierarquia — como se organizam?
Estas síndromes podem ser compreendidas em três níveis hierárquicos, que representam diferentes graus de complexidade e especificidade (Raja et al., 2020; Kosek et al., 2021; Schrepf et al., 2024).
Podemos imaginá-los como três camadas interligadas — do mais amplo ao mais específico — que explicam como a desregulação corporal se transforma, gradualmente, em sintomas clínicos definidos.
O primeiro nível é o das síndromes de disfunção sistémica, a categoria mais geral e abrangente (Schrepf et al., 2024). Aqui o corpo encontra-se num estado global de desregulação, com alterações da homeostase, disautonomia e inflamação crónica de baixo grau.
O segundo nível é o da síndrome de sensibilização central, que descreve o mecanismo neural que se desenvolve a partir dessa disfunção sistémica (Raja et al., 2020; Kosek et al., 2021).
O sistema nervoso central torna-se hipersensível e amplif**a sinais normais do corpo, deixando de distinguir bem entre segurança e ameaça — o fenómeno de dor nociplástica, segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (International Association for the Study of Pain — IASP, 2021).
O terceiro nível corresponde às condições clínicas específ**as, ou seja, as manifestações concretas e nomeadas dessa disfunção sistémica e sensibilização neural.
São as doenças reconhecidas pela medicina que resultam desses processos e que, apesar de tradicionalmente estudadas de forma isolada, partilham mecanismos comuns de sensibilização central, inflamação crónica de baixo grau, disautonomia e disfunção neuroimunitária (Wessely et al., 1999; Schrepf et al., 2024).
Entre elas incluem-se:
Síndromes de dor e sensibilidade corporal:
• Fibromialgia
• Síndrome de dor miofascial
• Dor lombar crónica inespecíf**a
• Síndrome de dor regional complexa (CRPS)
• Enxaqueca crónica e cefaleias tensionais
Síndromes viscerais e autonómicas:
• Síndrome do intestino irritável (IBS)
• Síndrome da bexiga dolorosa / cistite intersticial
• Dor pélvica crónica (em mulheres e homens)
• Síndrome da articulação temporomandibular (ATM)
• Refluxo gastroesofágico funcional e dor torácica não cardíaca
Síndromes de hipersensibilidade e disfunção multissistémica:
• Síndrome da fadiga crónica / Encefalomielite miálgica (ME/CFS)
• Síndrome de sensibilidade química múltipla (MCS)
• Síndrome de hipersensibilidade ambiental e eletromagnética
• Sensibilidade central generalizada (CSS)
• Condição pós-COVID / síndrome pós-viral
Estas condições formam um espectro contínuo, em que o denominador comum é a perda de autorregulação do sistema nervoso autónomo e imunitário, acompanhada de hipersensibilidade sensorial e disfunção energética celular.
Assim, o que as distingue não é a sua etiologia fundamental, mas sim a localização predominante dos sintomas (musculoesquelética, visceral, encefálica ou generalizada) e as vias fisiológicas mais afetadas (Kosek et al., 2021; Raja et al., 2020; Schrepf et al., 2024).
✔️ Como se manifestam (sintomas típicos)?
As síndromes de disfunção sistémica afetam diversos sistemas do corpo ao mesmo tempo.
Os sintomas mais comuns incluem:
• Dor crónica (local ou generalizada) e hipersensibilidade a toque, luz, som, cheiro ou temperatura;
• Sintomas autonómicos: palpitações, tonturas, intolerância ao esforço, transpiração irregular, sensação de calor ou frio excessivo;
• Alterações digestivas: dor abdominal, inchaço, obstipação ou diarreia;
• Fadiga constante e sono não reparador;
• “Névoa mental” — dificuldades de concentração, lentidão cognitiva e perda de memória recente;
• Maior sensibilidade a estímulos ambientais, como produtos químicos, ruído ou luz.
Muitas pessoas sentem que o corpo “reage a tudo”, mesmo quando os exames parecem normais.
Esses sintomas são reais e refletem alterações de regulação no sistema nervoso e imunitário (Kosek et al., 2021; Schrepf et al., 2024).
✔️ Etiologia — o que está por trás?
Não existe uma causa única para os síndromes de disfunção sistémica.
A investigação mostra que eles resultam da interação entre fatores biológicos internos e fatores ambientais externos, que, ao longo do tempo, alteram a forma como o corpo se autorregula.
Os principais mecanismos envolvidos incluem:
• Alterações na nocicepção (dor nociplástica): o sistema nervoso amplif**a estímulos que antes eram inofensivos (Raja et al., 2020; Kosek et al., 2021).
• Desequilíbrio autonómico: o sistema nervoso autónomo perde flexibilidade, mantendo o corpo em estado de alerta (Thayer & Lane, 2000).
• Processos inflamatórios de baixo grau: libertação contínua de pequenas quantidades de substâncias inflamatórias no cérebro e no corpo (Kosek et al., 2021; Straub, 2023).
• Stresse prolongado e trauma psicológico: experiências adversas reconfiguram o eixo HPA e deixam uma marca epigenética na resposta inflamatória (McEwen, 2007; Straub, 2023).
• Fatores ambientais externos: infeções crónicas, disbiose intestinal, alimentação pró-inflamatória, défice de micronutrientes antioxidantes, poluição atmosférica, exposição a metais pesados, toxinas ambientais, ruído e ritmos circadianos desregulados — todos podem atuar como segundos golpes (second hits) que reativam sistemas previamente sensibilizados (Straub, 2023; Schrepf et al., 2024; NIH COPC, 2023).
• Perturbações do sono e ritmo biológico: o sono fragmentado amplif**a a disfunção autonómica e imunitária (McEwen, 2007).
• Predisposição genética e epigenética: certas variantes genéticas aumentam a vulnerabilidade à sensibilização e à inflamação crónica (Schrepf et al., 2024).
Embora múltiplos fatores contribuam para este estado, Rainer H. Straub (2023) propõe que o trauma psicológico precoce tem um papel preditivo e programador mais forte do que os restantes fatores ambientais.
Segundo o autor, o trauma precoce funciona como o “primeiro golpe” (first hit) que programa biologicamente o cérebro, o sistema imunitário e o metabolismo para reagirem de forma mais intensa e desorganizada a todos os desafios ambientais posteriores.
Assim, infeções, poluição ou stress físico apenas se tornam patogénicos num organismo previamente sensibilizado pelo trauma inicial.
▶️ Contributo de Rainer H. Straub (2023) e investigação complementar
Segundo Straub (2023), o trauma psicológico precoce é o evento biológico primário que determina como o cérebro, o metabolismo e o sistema imunitário reagirão a todos os desafios ambientais posteriores:
“O trauma psicológico precoce é o principal acontecimento de programação biológica que determina como o cérebro, o metabolismo e o sistema imunitário irão reagir a todos os desafios ambientais posteriores.”
(Straub, 2023, p. ix)
Esta perspetiva é reforçada por Entringer & Heim (2025), que revisaram cinco décadas de investigação sobre o impacto do stress precoce na inflamação ao longo da vida, mostrando que o trauma infantil está associado a respostas imunes hiperativas e inflamação crónica de baixo grau, mesmo após controlar fatores genéticos e sociais.
Estudos longitudinais (Danese et al., 2007; Slopen et al., 2013) confirmam que esta associação mantém-se independente de fatores genéticos, socioeconómicos e comportamentais — indicando que o stress precoce deixa uma verdadeira “memória biológica” nos tecidos imunitários e no cérebro.
Enquanto Straub integra estes mecanismos num modelo unif**ado de psicoinflamação e disfunção sistémica, Entringer e Heim oferecem a base histórica que mostra como a investigação tem convergido para a mesma conclusão: o trauma precoce é um dos determinantes mais poderosos e duradouros da fisiologia humana.
✔️Referências
Danese, A., Pariante, C. M., Caspi, A., Taylor, A., & Poulton, R. (2007). Childhood maltreatment predicts adult inflammation in a life-course study: The Dunedin Study. Proceedings of the National Academy of Sciences, 104(4), 1319–1324. https://doi.org/10.1073/pnas.0610362104
Entringer, S., & Heim, C. (2025). A brief historic review of research on early life stress and inflammation across the lifespan. Neuroimmunomodulation, 32(1), 24–37. https://doi.org/10.1159/000534853
International Association for the Study of Pain (IASP). (2021). IASP terminology on pain and nociplastic mechanisms. International Association for the Study of Pain. https://www.iasp-pain.org
Kosek, E., Cohen, M., Baron, R., Gebhart, G. F., Mico, J. A., Rice, A. S., Rief, W., & Sluka, K. A. (2021). Chronic nociplastic pain in humans: Challenges and perspectives. PAIN, 162(11), 2437–2445. https://doi.org/10.1097/j.pain.0000000000002103
McEwen, B. S. (2007). Physiology and neurobiology of stress and adaptation: Central role of the brain. Physiological Reviews, 87(3), 873–904. https://doi.org/10.1152/physrev.00041.2006
NIH COPC Working Group. (2023). Chronic Overlapping Pain Conditions: Scientific advances and research roadmap. National Institutes of Health. https://heal.nih.gov/research/opioid-misuse/pain
Raja, S. N., Carr, D. B., Cohen, M., Finnerup, N. B., Flor, H., Gibson, S., Keefe, F. J., Mogil, J. S., Ringkamp, M., Sluka, K. A., Song, X.-J., Stevens, B., Sullivan, M. D., Tutelman, P. R., Ushida, T., & Vader, K. (2020). The revised International Association for the Study of Pain definition of pain: What does it mean for clinical practice? PAIN, 161(9), 1976–1982. https://doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001939
Schrepf, A., Clauw, D. J., Harte, S. E., & colleagues. (2024). The Chronic Overlapping Pain Conditions Screener: Development and validation. The Journal of Pain, 25(3), 218–230. https://doi.org/10.1016/j.jpain.2023.10.005
Slopen, N., Lewis, T. T., Gruenewald, T. L., Mujahid, M. S., Ryff, C. D., Albert, M. A., & Williams, D. R. (2013). Early life adversity and inflammation in African Americans and whites in the Midlife in the United States survey. Proceedings of the National Academy of Sciences, 110(41), 16838–16843. https://doi.org/10.1073/pnas.1314882110
Straub, R. H. (2023). Early trauma as the origin of chronic inflammation: A psychoneuroimmunological perspective. Springer Nature. https://doi.org/10.1007/978-3-662-66751-4
Thayer, J. F., & Lane, R. D. (2000). A model of neurovisceral integration in emotion regulation and dysregulation. Journal of Affective Disorders, 61(3), 201–216. https://doi.org/10.1016/S0165-0327(00)00338-4
Wessely, S., Nimnuan, C., & Sharpe, M. (1999). Functional somatic syndromes: One or many? The Lancet, 354(9182), 936–939. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(99)80077-0